Acompanhe Marcus André Vieira, diretor do V Enapol, entrevistado pela Almanaque On-line - revista eletrônica do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais — IPSM-MG - Disponível, na íntegra, em: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/07/textos/MarcusAndre.pdf
Safar-se com a loucura
Almanaque: O tema do V ENAPOL — “A saúde para todos não sem a loucura de cada um” — a se realizar em junho próximo — enfatiza o singular dentro do universal. Por sua vez, o título do PIPOL V, que acontecerá posteriormente, no mês de julho — “A saúde mental existe?” — questiona a universalidade de uma proposição. Como você vê a relação entre os dois temas?
Marcus André Vieira: Há, a meu ver, duas diferenças de peso com relação ao contexto em que os dois eventos se inserem (falo pelo que sei do Brasil, mas suponho que possa estendê-las ao menos em parte a nossos vizinhos das Américas). A primeira é que o sintagma “saúde mental” tem, para nós, uma delimitação mais específica. Denota um campo que tem origens na luta antimanicomial e que, apesar de flertar às vezes com a negação do real da loucura, não tem como significantes-mestre as estatísticas ou o organicismo dos laboratórios, que, na Europa, também podem ser acessados a partir da noção de saúde mental. Sua inspiração fundamental, humanista e basagliana, não é contraditória com o discurso analítico tal como o misticismo da avaliação. Por isso, optamos por abrir o leque. Até porque o psicanalista tem sido chamado a intervir não apenas na apresentação “biopsicossocial” do mental, mas também nas questões “psi” das escolas e da justiça, entre outros. A segunda diz respeito à precariedade dos universais em nosso meio. Veja o SUS. Nosso universal maior da saúde é tido como sinônimo de horror. Sem ele, porém, estaríamos exclusivamente nas mãos da medicina privada e dos seguros de saúde, com um mundo de excluídos. A história do americano que teve de escolher de qual dedo desistir por falta de dinheiro para pagar o reimplante dos dois perdidos me vem logo à lembrança. Nesse contexto, colocar em questão a ideia de uma “saúde para todos” pode contribuir com uma precariedade que só faz bem à saúde dos bancos. Para não correr esse risco, o Enapol não questiona, ao contrário, reafirma o universal da saúde, vai além, subscreve seu paratodos a ponto de multiplicá-lo em vários campos com seus eixos temáticos. Mas exige, não sem ironia, que ele seja descompletado pela loucura de cada um.
Almanaque: A presença de psicanalistas nas instituições evidencia um paradoxo, seja do lado da política social, em que a prática de inclusão segrega muitos para alcançar o “para todos”, seja do lado da psicanálise, em que a ética do “cada um” desconstrói o ideal universal. Como demonstrar a diferença da ética da psicanálise e atestar a presença do inconsciente em uma prática nessas instituições orientadas pelo ideal da administração e distribuição do bem para todos?
MAV: É bem verdade que a interpretação analítica tem como um de seus efeitos uma fragilização das identificações, um efeito imediato de “antitotalização”. Não há, porém, nada em uma análise que leve o psicanalista a se erigir como o campeão do singular. Não trabalhamos no estilo “há governo, sou contra”, mas sim no de delimitar qual universal está em ação, qual o singular que o sustenta e como os dois se combinam. Em uma análise, o universal está no campo do ego, que vai sofrer um bocado com o que lhe aparece vindo do inconsciente. Tudo terá que se rearranjar inúmeras vezes até que uma fração irredutível de gozo encontre lugar em uma conformação egoica que não lhe seja incompatível. Isso não se atinge sem que se torne possível, do ponto de vista do ego, um tanto de ironia com a própria imagem de si, um tanto de debilidade consentida, para retomar um tema que Henri enfatiza com relação à loucura deslocalizada. Haverá paralelo entre esse contexto e aqueles em que o psicanalista é chamado a atuar na cidade? Como manter essa orientação nesses casos? É o que vamos examinar nas inúmeras situações clínicas no Encontro.
Almanaque: De que forma entender a afirmação de que se deve investir o campo político para salvar a clínica? A defesa do direito de cidadania da psicanálise e do sujeito do inconsciente, sem que se responda à demanda do mestre contemporâneo, foi um assunto tratado na Entrevista do Almanaque On-line n.6. Isso lhe parece possível de acontecer?
MAV: Fui conferir a entrevista com Barreto. Entendo que ele marca uma tensão ineliminável entre o analista e o universal em qualquer instituição, o que não significa que seu trabalho seja o de “furar” o universal, como costumamos dizer. Há que considerar, no entanto, em cada contexto, com que Outro estamos lidando. Quando Gil Caroz fala, seguindo várias indicações de J.-A. Miller desde a luta contra a lei Accoyer na França, em salvar a clínica, o Outro dessa afirmação não é o das instituições clássicas. É o Outro que Barreto situa com o termo globalização, o de uma saúde definida em parâmetros puramente quantificados que não é mais o do ideal, mas sim do supereu. Ele não exige que se faça nenhum bem, mas apenas mais e mais produção. Diante desse Outro, a interpretação muitas vezes é impossível, até porque não há ninguém a ser interpretado, só um “sistema” despersonificado. Ouvi de um colega que no ambulatório em que trabalhava, no sistema de saúde inglês, extremamente burocratizado, que a cada final de sessão ele e o paciente tinham que preencher um questionário de avaliação. Os dados desse questionário são imediatamente processados e dessa forma o administrador tem em tempo real o estado de satisfação de todos os clientes do serviço. Quando os números de um terapeuta caem, ele deve se submeter a “x” sessões de supervisão compulsória. Esse é o Outro que temos muitas vezes diante de nós.
Almanaque: Em seu texto “A salvação pelos dejetos”, Miller diferencia o gozo como resto inassimilável da loucura que estrutura aquele que, elevado ao nível da Coisa, é passível de se integrar ao laço social, ao circuito das trocas. Os seis eixos de trabalho propostos para o V ENAPOL parecem seguir as diretrizes contidas nesse texto — a primazia do discurso do mestre no mundo contemporâneo, o que dele se recolhe como resto, os efeitos a ele contrários advindos das formações do inconsciente, o Outro mau da paranoia, a loucura estruturante e os artifícios de socialização encontrados pelos sujeitos. Esse gozo do Um estaria contemplado por algum desses eixos de investigação?
MAV: O Enapol estabelece algumas tensões. Um primeiro polo é formado pelo múltiplo de seus eixos. São seis: a saúde mental, a educação e o direito formam um leque, cobrindo aquilo que nos habituamos a chamar de psicanálise nas instituições. A segunda trinca é menos conhecida: a epidemia da avaliação, que aponta para o lugar da ciência e de suas emulações entre nós; a arte e seus objetos; e finalmente uma proposta de retomada da psicopatologia da vida quotidiana hoje. O horizonte parece ter a vastidão das Américas. Outro polo contrapõe a essa multiplicidade estonteante um tema geral: a loucura de cada um. Mas, como em nossa prática, as coisas nunca são tão simples. É que a loucura de cada um é tudo menos um universal. Façamos a correlação: a loucura de cada um é, aqui, o que costumamos chamar de sinthoma — o sintoma no que ele se apresenta como um osso de gozo, irredutível, exatamente isso a que você se refere em sua pergunta. As coisas, então, se invertem. Os eixos não são o múltiplo do Encontro. Diante da enorme multiplicidade singular da loucura de cada um, eles são temas gerais, que dividem o Outro de nossos dias em seis campos, mas que, mesmo assim, cobrem um horizonte coletivo comum. Por isso, na tarde de sábado, nos dividiremos em seis salas, uma sala para cada eixo, e, a cada situação, veremos como o sinthoma de cada um pode, ali, ganhar lugar. Então a resposta é que o irredutível da loucura não é contemplado especificamente em um dos seis eixos porque esperamos que ele se apresente em cada um deles.
Almanaque: A proposta do V ENAPOL será trabalhada pelo IPSM-MG neste semestre, por meio de um recorte temático: "A psicanálise e a loucura deslocalizada". Como entender a loucura deslocalizada em relação à dimensão do gozo que escreve o próprio sujeito?
MAV: A apresentação na Agenda está muito precisa. Destaco a seguinte passagem: “A loucura de cada um exige, muitas vezes, um espaço de exceção e uma lógica singular de abordagem. Tal realidade cobra da psicanálise a invenção de dispositivos que lhe permitam fazer valer sua ética, seu discurso, nos diversos espaços em que se faz presente.” Entendo que, diante desse Outro da burocracia generalizada, somos instados, por um lado, a agir mais do que antes no plano político, como você lembrou bem, e, ao mesmo tempo, a inventar, no plano da clínica, como enfatiza Henri. Um não vai sem o outro. A pergunta que se coloca então é “como”? Aproximar o “paratodos” em questão da quantificação burocratizada do supereu é um primeiro passo. Outro poderia ser o de eleger como baliza conceitual a noção de nãotodo. Temos tendência a pensá-la como “do bem”. É quando a usamos como “nemtodo” e imaginamos um todo a quem faltaria alguma coisa e que por isso fosse mais humilde, simpático até. Ao contrário, o nãotodo não é um todo furado, mas o de um gozo que não se totaliza e que por isso nunca é Um, inteiro. É o gozo no registro do Outro que não existe, um gozo desintegral, líquido. Não é bom, nem mau, mas sempre é sem limites. Pode ser fundamental, como quando falamos do gozo feminino, mas ao mesmo tempo ser terrível porque, como o “sistema”, está em todo lugar e em parte alguma. Nossa ferramenta para lidar com ele é a delimitação (invenção?) de um sinthoma, uma localização desse gozo por meio artesanal, às vezes bem sofrida. É o que realiza uma análise, mas não só ela. Em nosso texto de base, a “Salvação pelos dejetos”, Miller dá ênfase à multiplicidade do trabalho do analista com os dejetos do psíquico. A meu ver, ganharíamos, no momento atual da preparação do Encontro, associando sua leitura à de outro texto, “A ex-sistência”, em que Miller situa conceitualmente o lugar ocupado pelo real em nossa clínica. O sinthoma nunca consiste, apenas ex-siste. Por isso mesmo, não garante remissão de nada, nem mudanças contabilizáveis. Não nos curamos dele, mas com ele às vezes nos salvamos, nos safamos, de nossas embrulhadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário