19.5.12

As metamorfoses de Almodovar



 

 Disponível em Lacan Cotidiano 29

por Jean-Pierre Deffieux

“Fora com todos os enxertos” - Libération, quarta-feira, 14 de setembro: é o título de um artigo de Eric Favereau. Enxertos de mãos, de rostos, coração artificial implantado no corpo, reconstrução de órgãos a partir de enxertos do próprio corpo, traqueia autofabricada a partir de um retalho de pele, construção de brônquios artificiais a partir de tecidos da aorta, tudo isto não é um projeto, tudo isto já está sendo feito repetidamente.
O último filme de Almodóvar, “A pele que habito”, leva ao paroxismo as consequências para o sujeito dos avanços da pesquisa médica. A transformação cirúrgica de um homem em mulher, já é praticada há vários anos em transexuais, mas, neste filme, a transformação não é desejada, é forçada, é uma violação do corpo. Sobre a mesma pessoa também é colocada uma nova pele artificial, muito resistente, obtida através de terapia celular.
Não é de hoje que Almô esburaca a questão do gênero, os limites entre os sexos, a incerteza da identidade sexuada entre desejo homo e hetero sexual, mas também coloca em questão a família tradicional, em relação à família de escolha. Há bastante tempo ele o faz de modo extravagante, algumas vezes um pouco demais.
Trata-se nesse filme de uma épura, uma purificação. Almodóvar esvaziou todo o supérfluo para colocar sua questão de forma clara. Ela emerge no decorrer do cenário à la Hitchock: a ciência pode transformar um homem numa mulher para além da aparência corporal?
Vicente, vitima da vingança de um cirurgião “decidido”, é feito refém e desperta Vera, transformado em mulher, com um corpo de mulher, um sexo de mulher.
Vera, agora aprisionada na suntuosa clínica-residência do cirurgião, é seguida por trás das telas de vídeo, nas diferentes peças da casa, que expõe em suas paredes, corpos femininos magníficos e cheios de carne, de Tintoretto. A diferença é gritante entre a imagem da feminilidade exacerbada (dos quadros de Tintoretto) e o corpo estranho da criatura andrógina, quase virtual, recoberta com uma combinação colante cor de carne protegendo a pele. O mistério da feminilidade aparece com toda sua força nesta diferença mesma.
A nova pele que lhe foi enxertada, Vera chega pouco a pouco a habitá-la, exercitando seu corpo em longas práticas ginásticas e relaxantes às quais ela dedica longas horas por dia, mas também pela prática da escultura, o que coloca em jogo a colagem de tecidos sobre uma espécie de marionete, ou seja, ela mesma, o que ela foi forçada a se tornar. Bela, mas muito estranha, e estrangeira a si mesma.
Ela domina esta pele pouco a pouco, mas é-lhe impossível ligar o seu ser, seu ser sexuado de homem, a este “saco de pele vazia”.
Acredita-se, num momento determinado, que o amor, o nascimento de um sentimento amoroso por seu carrasco, vai permitir esse nómas isto não acontece; ela vê num jornal a foto do homem que ela foi e nesse momento é ultrapassada pela força da pulsão de morte. Ela mata então, o horroroso autor desta metamorfose programada.
O final do filme, seu ponto de capitonê, é a curta frase que Vera diz à sua mãe, que não pode reconhecê-la. Ela chega em casa, revestida com os semblantes de feminilidade, lindamente vestida e maquiada e diz-lhe depois de um longo tempo de silêncio: “Sou Vicente”.
Como sempre ela é Vicente, e para sempre na pele de uma outra, revestida com o envelope feminino.
Mais um artista que apreende a estrutura de modo perfeito, sem provavelmente saber disto. Este Almodóvar lacaniano demonstra que nenhuma ciência, nenhum recorte do corpo jamais comandará a relação do falasser com a singularidade de seu gozo.   

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