por Pierre Naveau
Disponível em Lacan Cotidiano 191
Existe o Autismo, tal como se debate atualmente, referindo-se às crianças que não falam, e existe o autismo no sentido amplo de que falava Jacques-Alain Miller em seu curso, colocando ênfase sobre o Um do gozo que se repete e sobre a adição, como resultado disso. Ele chega a formular, então, que esse autismo seja aquele onde a ironia visa excluir o Outro e, assim, romper o laço com o Outro.
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É o caso, por exemplo, do narrador da história de Georges Perec intitulado: Um homem que dorme (Folio, n º 2197). O narrador se dirige a ele mesmo, colocando a si entre aspas, de alguma forma, por meio do tu - como o fez Franz Kafka em suas Meditações sobre o pecado, sofrimento, esperança e o verdadeiro caminho. Georges Perec, destaca em sua história, estas poucas linhas de Kafka:
«Não é necessário que você saia de sua casa. Permaneça na sua mesa e ouça. Nem mesmo esperar, esteja absolutamente em silêncio e sozinho. O mundo virá para ti, a fim de que você o revele, não pode ser de outra forma, com êxtase, ele se contorcerá diante de você».
Chegou o dia do seu exame; o narrador da história de Georges Perec não se levanta. Ele não sabia que permaneceria em sua cama. Mas, esta manhã, especificamente, ele não conseguiu se levantar. Seu despertador tocou, ele abriu os olhos. Em seguida, ele permaneceu em sua cama e fechou os olhos. Podemos falar de uma decisão do ser?
"Um outro, sósia, um duplo fantasmagórico e meticuloso, faz, talvez em seu lugar, um por um, os atos que você não faz mais: ele acorda, toma banho, faz a barba, se veste, e vai". (p. 19)
Ele não se movimenta. Ele não se movimentará, não fará seu exame:
«De todo modo, você não terá falado nada, pois você não sabe grande coisa e não pensa nada. Seu lugar permanece vazio. Você não acabará com o seu silêncio, você nunca começará com diploma. Você não estudará mais» (p. 20). Um homem que dorme é um homem que passa o mais claro do seu tempo, estendido em sua cama: «Você não deseja ver ninguém, nem falar, nem pensar, nem sair, nem se movimentar. (…) Você descobre, sem surpresa, que alguma coisa não funciona, que (…) você não sabe viver e não saberá jamais. (…) Alguma coisa está quebrada. Você não se sente mais – como dizer? – apático: (…) o sentimento da sua existência (…) se presta a lhe fazer falta » (p. 21-22)
A história de Georges Pérec é, de fato, uma maneira de extrair um inventário desse mundo que lhe é insuportável. Este inventário começa assim:
"Você tem vinte e cinco anos e vinte e nove dentes, três camisas e oito meias, alguns livros que você não lê mais, alguns discos que você não está ouvindo mais." Você não quer se lembrar de nada, nem da sua família, nem dos seus estudos, dos seus amores, dos seus amigos, das suas férias ou seus projetos. (…) Você está sentado e quer só esperar, somente esperar até que não haja nada mais para aguardar (...) Você não revê seus amigos. Voce não abre a sua porta. Você não desce para ver o seu correio. Você não devolve os livros que tomou emprestado da Biblioteca (...) Você não escreve para seus pais. "(p. 25)
Um homem que dorme vê-se como uma ostra. Ele se apega à fixidez de sua inércia. Ele é incapaz, portanto, de afirmar que se trata de uma recusa. Porque tal asserção seria necessário sustentá-la! E ele não tem força para isso. Talvez isso é, muito simplesmente, uma demissão. No entanto, ele consegue deixar Paris e ir ver seus pais. Ele permanece lá por vários meses. Mas, ele só fala com eles em sofrimento. Ele só os vê nas horas das refeições e come em silêncio. Quando passeia no campo, ele percebe que não sabe o nome das árvores, das flores e das plantas. Para ele, uma árvore é uma árvore. Só existe essa evidência da coisa em si. (Isto faz pensar Antoine Roquentin). Trata-se então, do ódio? Não, não é isso. Ele não odeia os homens. é que tudo está dito. Por que, desde então, fingir viver? De fato, ele se demite da parte que está prestes a jogar: "você já não sabe tudo o que acontecerá com você? (p. 44)
De volta a Paris, ele faz do seu quarto, o centro do mundo:
"O seu quarto é a mais bela das ilhas desertas e Paris é um deserto que ninguém nunca atravessou." Você não precisa de mais nada, senão dessa calma, desse sono, desse silêncio, desse torpor. (…) Nada mais quer. Aguarde até que não haja nada a esperar. Arrastar, dormir. (…) Perder seu tempo. Fora de qualquer projeto, qualquer impaciência. Estar sem desejo, sem rancor, sem revolta. "(p. 52)
Um homem que dorme é um homem que assim aprende a não existir neste mundo:
"Você está só". Você aprende a andar como um homem sozinho, a vagar, a arrastar, a ver sem olhar, a olhar sem ver. Você aprende a transparência, a imobilidade, a inexistência. Você aprende a ser uma sombra e olhar os homens como se eles fossem pedras. "(p. 55)
Esta estratégia solitária e silenciosa constitui seu único caminho: "Tudo para você é igual." (p. 64) "não há nada a dizer, senão: você lê, você está vestido, você come, você dorme, você anda...". » (p. 65)
Assim, um homem que dorme, acontece nele, o abandono:
"Ao longo de horas, dias, semanas, temporadas, você se desprende de todos, você se destaca de tudo." Você descobre, com quase, às vezes, um tipo de embriaguez, que você é livre, que nada pesa em você, não lhe satisfaz nem insatisfaz. "(p. 76)
Ele não existe, afinal de contas:
"Você não existe mais: seguem-se as horas, seguem-se os dias, a passagem das estações, a passagem do tempo, você sobrevive, sem alegria e sem tristeza, sem futuro e sem passado, assim, simplesmente, evidentemente, como uma gota de água que desce nos degraus (…), como uma mosca ou uma ostra, como uma vaca, um caracol, como uma criança ou um velho", “como um rato. "(p. 77)
No fio da história de Georges Perec, surgiu então essa frase terrível: "Você não explode nunca de rir." (p. 86) O desapego vira, desde então, indiferença:
"A indiferença não tem nem início nem fim: é um estado imutável, um peso, uma inércia que nada saberia desestabilizar.". (…) A Indiferença dissolve a linguagem, obscurece os sinais» .
Aquele que Georges Perec chama de "um homem que dorme" acabará por ter a impressão de ser feito como um rato:
"Vida sem surpresa." Você está seguro. Você dorme, você come, anda a pé, você continua a viver como um rato de laboratório que um investigador imprudente teria esquecido no seu labirinto... "(p. 94)
É um homem sem história. Em suas Meditações, Kafka diz que os dois principais pecados são a impaciência e a preguiça. É essa preguiça que agora leva o homem que escolheu a solidão, em direção ao silêncio?
"Você parou de falar e só o silêncio lhe respondeu." (…) Agora você vive no terror de silêncio. Mas você não é o mais silencioso de todos? "(p. 113)
Este é Um homem que dorme que eu pensei que, quando em uma apresentação de paciente em um hospital-dia para adolescentes psicóticos, encontrei-me com Marc, um jovem de 18 anos.
Marc é uma criança adotada. Enquanto o homem do qual fala Georges Perec, decidiu não ir mais para a Universidade, Marc, ele se recusou a ir para a escola. Ele estava com medo. Ele ficava estendido, durante todo o dia, no sofá, assistindo televisão. Um psicólogo disse a seus pais: "Deixe-o sair de casa para ir à escola. Pegue dele a chave da casa para a casa e tranque a porta, para que ele não possa entrar em casa". "Nesse momento, seus pais pensaram que ele, na verdade, zombava deles, que ele não queria ir à escola porque ele era um preguiçoso. Sua mãe, que é professora em um colégio, lhe reprovou sua preguiça. Marc não conseguiu se levantar de manhã. O que o impede de se levantar? Marc não sabe. A única coisa que ele pode dizer é que ele se recusa a estar no hospital. Ele não pode admitir que está doente. Mas em casa, como ele mesmo o reconhece, a tarefa tomou proporções enormes. Quando, pela manhã, ele não se levanta, ele é tratado com todos os nomes por seu pai. "Você é um inútil," lhe diz seu pai.Isso não é dele. Ele chega até a insultá-lo. Ele não compreende por que Marc não se levanta. Não se levantar significa, para o seu pai, querer fazer nada. Quanto mais Marc se afunda no abismo do seu sintoma, mais ele é aterrorizado por seu pai.
Marc é apaixonado pela informática. Ele sonha com um novo computador. Qual?, perguntei-lhe. Um Mac Book Pro, me disse com orgulho. Mas seus pais não têm condições para comprá-lo. Uma noite, seu pai fez uma piada de mau gosto. Ele retornou do seu trabalho com a caixa de um Mac Book Pro. Subitamente feliz, Marc correu para abrir a caixa. Ela estava vazia. Isso não o fez rir. Ele ficou desapontado. Foi cruel, de fato, por parte de seu pai.
Marc não compreende porque ele está no hospital. Ele não sabe de qual doença ele sofre. Ninguém lhe disse o nome desta doença. Marc, então, disse: "Não aceito ser doente." Nesse meio tempo é que eu apontei para Marc que é ele quem tem a resposta para a pergunta que ele se coloca. Eu lhe disse: "Você é um homem que não consegue levantar-se pela manhã. É o nome da sua doença. " Marc, então, retorquiu: "Se eu disser a meus pais que o nome da minha doença é o homem que é incapaz de se levantar de manhã, eles vão me olhar atravessado." Essa réplica bem ajustada fez rir à assistência. "Bem – eu acrescentei –, você irá enviar a seus pais, a história de Georges Perec: um homem que dorme". Você, você não é um homem que dorme, você é um homem que não consegue levantar-se pela manhã”. Na verdade, há um traço comum entre Marc e o herói sem nome da história de Georges Perec. Há neles, esta recusa ignorada por eles mesmos, que faz um retrato da retirada do mundo. Trata-se, tanto para um como para o outro, de não tomar parte na jogada que está prestes a se jogar, e assim, se subtrair à luta pela vida. Isto é que faz a infelicidade dele. Qual, enfim, é a questão? Um medo? Uma recusa em participar? Uma rebelião? Uma maneira de fazer greve? Ou é necessário ir até aí: uma recusa pela vida?
Em todo caso, Georges Perec mostra claramente para onde leva tal retrato - à perda da fala:
"Você parou de falar e só o silêncio lhe responde." Mas, estas palavras, essas milhares, esses milhões de palavras que pararam em sua garganta, as palavras sem prosseguimento, os gritos de alegria, os gritos de amor, os risos idiotas, quando, portanto, você os reencontrará? "(p. 113)
Não se levantar, em si, isso não quer dizer nada. É o sinal de uma impossibilidade que se faz escutar, a fazer escutar a sua voz. Assim, Marc renunciou a falar, a abrir a boca para dizer da sua dor e do seu desespero. Ele não consegue se levantar de manhã porque lhe é impossível dizer, de todo modo, o que lhe acontece. ₪
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