7.6.12

▪LEITURA DE UMA EXPOSIÇÃO▪


Disponível em Lacan Cotidiano 123
“Inquietantes Estranhezas” Solenne Albert
Até 15 de janeiro de 2012, o museu de Belas-artes de Nantes apresenta, na capela do Oratório, a exposição “Inquietantes estranhezas”. Baseado num princípio de releitura das coleções do museu, as obras expostas foram reunidas a partir de um ponto em comum : “o singular, o insólito, o perturbador, o dificilmente reconhecível, ou até mesmo o assustador.” – tomando-se a hipótese de que a inquietude pode surgir da ficção, desvendando os “terrores primitivos” humanos reprimidos. O conceito freudiano é usado como um “utensílio metodológico” para interrogar “a força do paradoxo, a contradição, a tensão e a ambivalência das obras.”
Na primeira sala, “a tela e o reflexo”, o espelho é usado como “potência de transfiguração do real”. Na segunda sala, “o inferno e a doença”, a dor e a punição oferecem a imagem do eterno recomeço e do que – no coração do humano – divide e distribui : o ponto de gozo opaco e insuportável. Na sala “o sonho e o imaginário”, a magnífica “aparição do anjo a São José” de Georges de la Tour reflete-se nas “folhas mortas” de Alexandre Chantron ; as ninfas acabam de morrer, o sono aparece em sua face mortífera e o olhar não encontra outra escapatória : ele bate de frente, por onde quer que ele vá, no real. A sala “A morte, o crime e a metamorfose” se apresenta como reflexo de nossos terrores infantis tornados inconscientes : A mulher existe e é assassina (“Judith que acaba de cortar a cabeça de Holofernes” de Giovanni Battista Spinelli ou “Salomé” de Jean Brenner). Na sala “rostos e máscaras”, os retratos hipnotizam, a identidade desaparece. Sob a máscara: um grito, lúgubre e infinito. Na sala “a sombra e o fantástico”, a alegoria da caverna, representada por Hugues Reip, é também metáfora do inconsciente. A última sala : “a interpretação e o real” é um questionamento sobre nossa percepção do real. Como distinguir real e realidade ?
Ao sair dessa exposição, um certo mal-estar se traduziu sob a forma de uma pergunta : essa exposição saberia suscitar – naqueles que pouco o conhecem– a vontade de ler o texto de Freud ? Em seu texto, Inquietante Estranheza, Freud diz que não ficaria impressionado “em descobrir que a própria psicanálise, pelo fato de ser empregada para trazer à luz essas forças ocultas (geheim), tenha se tornado estranhamente inquietante para muita gente”.
Essa exposição não indica – de fato – o que a aventura analítica permite de descobertas inéditas que vão ao encontro de nossos fantasmas inconscientes e de nossos terrores infantis. Ela não diz que uma análise consiste, justamente, em se libertar dessas forças animistas que são as tantas figuras do horror.
Sair do espelho
Desta “área específica da estética”, que suscita a angústia e o terror, Freud desenhou os contornos a partir, primeiramente, de uma análise etimológica precisa e cativante que torna, assim como a metáfora da luva virada, o unheimlichkeit em heimlich. O unheimlichkeit é ao mesmo tempo o desconhecido e o familiar, o que fica na sombra e o que aparece ; o que é impenetrável e fascinante.
Freud se baseia no conto de E.T.A. Hoffman para traduzir a indizível impressão e detectar nela seu momento de emergência. Nesse conto, as figuras fantasmáticas produzem horror porque elas nos trazem à memória “a angústia infantil e aterrorizante que é a de perder ou danificar os olhos.” (p. 231) Substituto da angústia de castração indizível, o conto faz emergir essa verdade esquecida : “o homem tem a capacidade de observar a si mesmo”, o olho é espelho.
O tema do duplo, tal como Freud o analisa neste texto, contém “um desmentido eficaz da pulsão de morte”, pois, antes de ser inquietante, o Outro era uma “garantia de sobrevivência (…) contra o desaparecimento do eu, uma recusa eficaz da pulsão de morte”. Assim, o tema do desdobramento que suscita “a inquietante estranheza” era também o que permitia se salvar da aniquilação. É então num segundo momento – segundo em relação à criação do superego – que “o duplo torna-se uma imagem de terror”.
O que há de estranhamente inquietante no retorno do mesmo, tem sua fonte nessa parte pulsional, estranha a si mesma. É essa compulsão interior de repetição que é sentida como estranhamente inquietante. O olhar pode assim tomar formas de superstição inquietante, por exemplo a do “mau olhado” pois “tais movimentos inquietantes se traem pelo olhar”.
O prefixo “un” é então a marca do recalque. “Um efeito de inquietante estranheza se produz com frequência e facilidade, quando a fronteira entre a fantasia e a realidade está apagada, quando se apresenta a nós como real algo que até então havíamos considerado como fantástico(...).”
Mas essa exposição não permite perceber os momentos de witz, inerentes à experiência do inconsciente no qual aparece o “sentimento de cômico” ligado a essa “volta não intencional do mesmo”; no momento em que acontece, em nossa vida, “alguma coisa que parece trazer uma confirmação dessas antigas convicções que havíamos descartado.”
Do inquietante à causa do desejo
Com Freud, Lacan percorre inversamente esse caminho que vai do unheimlich ao heimlich, e, fazendo isso, ele abre uma nova via ao desejo, a partir da angústia. O que angustia ? Qual é o objeto, suscetível de produzir esse “afeto que não mente” e que, contudo, erra ao se dizer ?
Em seu Seminário X, Lacan correlaciona a dimensão da inquietude à da angústia e “revifica toda a dialética do desejo” ao introduzir “uma nova clareza quanto à função do objeto em relação ao desejo.” (p. 265)
Se o desejo está “ligado à imagem, é função de algum corte sofrido no campo do olho.” (p. 265), o espelho é “esse campo do Outro no qual deve aparecer pela primeira vez, senão o a, pelo menos seu lugar – enfim, a mola radical que faz passar do nível da castração à miragem do objeto do desejo.” (p.265)
Nessa exposição, a inquietante estranheza é abordada do ponto de vista da ilusão cristã, ou seja, a partir da tentativa de provocar a angústia no Outro. Ela deixa intocada a inquietante estranheza do ponto de vista do budismo : o desejo é ilusão, não há visada sobre nada e “se esse vaso se torna angustiante, é para isto que o a vem preencher pela metade o vazio nele formado pela castração original.” (p. 238).
“Se há um objeto do seu desejo, ele não é senão você mesmo.”
Através do “tema do duplo”, que atrai e fascina, o sujeito busca o que há, de si mesmo, perdido. Essa parte, para sempre perdida, é o que ele busca encontrar no espelho. Mas falta uma mola: a que faz passar o a, do nível da castração, à miragem do objeto de desejo e à causa que anima.

O objeto a não é especular
Essa simetria entre o ponto de angústia e o ponto de desejo, que Lacan aborda em seu Seminário X, permite uma abertura que não aparece nessa exposição. Não aparece a relação da angústia como sendo o campo em que a morte se liga estreitamente a renovação da vida, pois “o objeto a é o que falta, não é especular, não é apreensível na imagem.” (p. 294)
O que esta exposição não diz, é que a “operação analítica efetua uma retificação do desejo”. Ela permite passar do trágico ao cômico, do aterrorizante ao Witz, da angústia à causa do desejo.
A inquietante estranheza, abordada sob o ponto de vista daquilo que vem preencher o vazio, desconhece o objeto a em sua dimensão de ausência e de inapreensível, ela esquece que, o que faz de uma psicanálise uma aventura única “é a procura do agalma no campo do Outro.” (p. 390) e que “a impossibilidade para o sujeito de encontrar, nele mesmo, sua causa no nível do desejo”. (p. 381) é o que o anima, que o torna vivo.
A angústia surge quando algo aparece “no lugar da falta, no lugar que deveria ficar vazio.” (p.53)
Assim, nesses quadros, a morte – enquanto real – ocupa o lugar do que deveria ficar vazio, o da castração imaginária, já que o real “é aquilo que nada falta”.

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