Tupac Hologram Snoop Dogg and Dr. Dre Perform Coachella Live 2012
Lacan Cotidiano 225
Por Bruno Durand
Os mortos não retornam para o meio dos vivos senão em pequeno número. Pode-se mesmo estimar que na haja mais mortos! Tupac Amaru Shakur, rapper, conhecido por seus nomes artísticos de 2PAC e Makavelli, nasceu em 16/06/71 em New York morreu assassinado em um fuzilamento em 13/09/96, em Las Vegas. Ora, ao longo do acontecimento musical de Coachella na Califórnia, em 2012, Tupac reapareceu em cena, em duo, com os rappers Snoop Dog e Dr. Dre. Ele pôde lançar para seus fãs um “What’s up Coachella?” retumbante[i]. Em homme e em imagem, Tupac, magistral, visto em contre-plongée, torso nu, calça branca, é o signo de um passado que ressurge, no circuito fechado do tempo.
A técnica empregada para essa ressurreição não foi a do holograma, nem mesmo a de uma ilusão 3D. Ela é em realidade muito antiga, inventada em 1862, utilizada no teatro pela primeira vez quando de uma representação em Londres de uma peça de Charles Dickens, The Haunted Man and The Ghost’s Barguin. Essa técnica foi chamada Papper’s Ghost[ii], ela é destinada a criar ilusões de ótica. Coloca-se diante da cena um vidro inclinado, invisível aos olhos do público, sobre o qual se projeta a imagem virtual – UmGrande vidro duchampiano de certo modo, ou richetriano, visto que eis retomado o tempo de Gerhard Richter[iii]. Um pedaço de vidro apresenta a vantagem de ser ao mesmo tempo transparente e refletor segundo a sua posição em relação ao público. Trata-se, portanto, primeiramente de uma história de projeção.
“Tão somente tu consentes em pegar um espelho e virá-lo para todos os lados, muito rápido, tu produzirás o sol e os astros do céu, e também rapidamente a Terra, rapidamente sempre, a ti mesmo e aos outros animais, e os móveis e as plantas, e tudo do qual se falava a um instante...” diz Sócrates – “Sim – responde seu companheiro (Glaucon)” ...as aparências, mas certamente não os seres que existem verdadeiramente[iv].” “O visível não é senão uma sombra, uma aparência enganosa; o visível (a arte, notadamente) é ilusão, fantasma” observa Platão. Por isso a filosofia condena implacavelmente as imagens. A imagem funciona de início por projeção mental. Isso é o que é significado por Platão . Em o Théétète, ele a compara às impressões nas tábuas de cera.
Do mesmo modo, para Aristóteles[v]: “Pode-se imaginar, quer dizer produzir imagens, não sem antes haver percebido”; Ele acrescenta que “imaginação obtém seu nome de luz”, que a representação é ao mesmo tempo representação e representação de alguma coisa; ao mesmo tempo imagem (visage) e lembrança. “Um animal pintado em um quadro é ao mesmo tempo um animal e uma imagem”. Tupac e a imagem de Tupac. Patrick Vauday[vi] sublinha, entretanto, a nova relação à imagem instaurada por Aristóteles: esta não é mais o duplo enganador temido por Platão, mas “a elucidação... permitindo uma racionalização do sensível”. Phantasia é o termo que designa esta aparição “fabricante de imagens”. Trata-se de um processo; são as phantasiai, quer dizer as imagens percebidas, que têm elas próprias a força de construir as imagens.
Depois, a imagem se torna uma projetiva, a de uma ordenação do mundo; aquela da ciência e dos artistas. Esta ocorrência aparece mais especificamente na “Perspectiva” de Vitellion (Livro VII), no século XIII, uma de óptica (e de teologia) que influenciará Kepler. Enfim, isto foi a conquista do espaço: Alberti, Brunelleschi, Dürer e sua aproximação da perspectiva enquanto visão “atravessadora” (portão). O termo perspectiva tem a mesma origem que perspicere: ver através, mas também ver melhor.
No caso Coachella, a proeza não está exatamente ligada à óptica, ela é muito mais gráfica. A imagem de Tupac, com efeito, foi inteiramente recriada no computador baseando-se nas características físicas e gestuais do cantor, isto a partir dos espetáculos anteriores. O resultado é siderante e a mise-en-scène Tupac, na idade da luz digital, inscreve-se no registro de trompe-l’oeil. Entre verdade e artífice, artimanha, ele interroga a imagem do corpo, presença fantasmagórica, e o que é dele nesta presença na idade do virtual. “Está claro que o advento de imagens sem referente ou virtuais abre uma nova etapa no que concerne às questões de representações”, ressalta Alain Badiou[vii] . O tromp-l’oeil na idade digital diz adeus à famosa turnê “Age tendre”; encontro já contratado pelos produtores com Elvis e Mickael Jackson.
Convenhamos, todavia, que todos os modelos não são da mesma têmpera. Na ordenança clássica das paixões, o modelo domina a cópia. Para o Abade Du Bos[viii], por exemplo, Le Massacre des innocents de Le Brun é uma bela obra nesse sentido, que é o modelo o que nos importa e que ele é digno. É preciso que a coisa imitada nos emocione: “...Se a coisa imitada não nos emociona... como vocês querem que o artefato consiga isso!”! comentava já Aristóteles. E de acrescentar a seguinte dimensão: é preciso que o original nos toque, mas, ainda, que haja uma beleza na execução: “Não é o objeto que nos seduz, mas a arte do imitador. É menos o objeto que fixa nossos olhares que a habilidade do artesão” (Du Bos).
Assim, o prazer perturbador experimentado, transtornador, próximo ao sublime, de reencontrar Tupac, aquele que associa um sujeito amado impressionante, prodigioso, uma sensibilidade estética, o reconhecimento de uma virtuosidade científica, uma beleza de execução. Nesse sentido, o universo da arte e o da ciência se reencontram; eles têm isso em comum: a pertinência, quer dizer, o sentimento de iluminação intelectual, e a potência, aquela do demiurgo. Há nessa imagem de Tupac alguma coisa densa que satisfaz nossa nova apetência de leitura hipermoderna, para retomar um termo de Gérard Wajcman.
Mais mortes, seguramente, mas, mais paradoxalmente, um retorno inesperado da aura. A aura, “única aparição de um longínquo” escreve Benjamin com uma ponta de desespero, havia desaparecido (objeto perdido), a massa a havia afastado sob o abrigo de acessibilidade[ix], apostando na fotografia, o cinema, objetos de uma recepção coletiva. Benjamin faz uma constatação lúcida e melancólica sobre a democratização da cultura. E isto, mesmo se o filósofo percebe quanto, para a massa, trata-se de conquistar um direito no mundo das imagens que o quadro lhes recusa. Benjamin articula a aura ao ritual; o não acessível, a raridade tem um valor cultual que se opõe ao “valor de exposição” abrindo, este, ao grande acesso da era da reprodução. Ora, eis que para a massa, a aura, de uma certa maneira, ressurge via a reprodução. O cantor em carne e osso, o Único, abolindo a fronteira do autêntico e do inautêntico, retorna. Quem nunca sentiu saudade, sob a forma de falta (manque): “eu nunca vi esse tal no palco...”? Ainda é preciso, é consubstancial à ideia de aura, que esse último possuísse um brilho susceptível, ao mesmo tempo de nos iluminar e de nos cegar. Escolhe-se seu objeto. É o caso de dizê-lo: “O encontro do objeto é de fato um reencontro”[x]· Exigir-se-á então, por que não, em um novo ritual espetacular, uma série de Tupac, um Tupac atualizado. Por sua reprodução mesmo, tomar posse do objeto Tupac, graças a sua imagem. A aura é inerente ao mágico. E recordemos que na esfera teológica, a aura e a auréola fazem referência ao espelho, um espelho ainda “vazio” e se apresenta como “enigma a cumprir”. Assim, o branco da calça de Tupac, na imagem nos limites do ícone, permite intensificar os reflexos – o que nos reenvia ao espetacular. “What’s up Coachella?”. Isto que tem uma aura é o que tem um olhar, uma voz. Aí, onde se inscreve o desejo do sujeito.
As ficções permitem domesticar a confrontação com a morte; aquela dos Fins dernières[xi] é comentada por Lacan[xii]. Nesse dia, os mortos não ressuscitem mais na cena de nossas crenças, mas nas cenas do showbiz. Não é mais simplesmente questão da instalação de uma ficção, mas a do “tout fiction” (tudo é ficção). De mais mortos lê-se: mais vivos.
[ii] Bigbrowser.blog.lemonde.fr
[iii] «Major retrospective» de Gerhard Richter no Centro Pompidou (6 junho – 24 Setembro)
[iv] Platão, A República, Livro X.
[v] Aristóteles, Da alma, Livro III, 3
[vi] Patrick Vauday, L’Invention du visible, Paris, Hermann, 2008.
[vii] Alain Badiou, Second manifeste pour la philosophie, Paris, Fayard, 2009
[viii] Abbé Du Bos, Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture, Paris, (énsb-a), 1993
[ix] Walter Benjamin, Ecrits français, L’œuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée, Paris, Gallimard, 1991
[xi] Anunciamos a exposição Signorelli em Pérouse, até 26 agosto
[xii] Jacques Lacan, As Formações do inconsciente, Seminário 1957-58.
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