"As máscaras da felicidade"
(Resenha)
Por: Mariana Galletti Ferretti EBP-SP – Clin a
Lacan (1959-1960/2008), no Seminário VII, A ética da psicanálise, precisamente na aula intitulada Da criação ex nihilo, destaca que a Coisa sempre se apresenta de forma velada. Esta afirmação acarreta dois aspectos: o primeiro é que o véu que recobre a Coisa implica o fato de que ela nunca poderá ser diretamente apreendida, mas, sim, percebida como efeito do objeto reencontrado. O segundo aspecto é que o objeto reencontrado é a representação de Outra coisa, daquilo que está perdido para sempre. Esta procura se dá pela via do significante, que neste momento deve ser entendido como aquilo que pode ser modelado pelo homem.
Este é o ponto no qual Lacan introduz a discussão sobre a criação que, não por coincidência, está no título desta aula. A criação pode ser entendida como a modelagem dos significantes pelo homem, e, para ilustrar isso, Lacan nos apresenta a dialética contida no vaso. Este utensílio que desempenha a função de significante é composto tanto pelo pleno da matéria quanto pelo vazio que possibilita a sua forma. É uma representação topológica da criação possibilitada pela existência do vazio: “se o vaso pode estar pleno é na medida em que, primeiro, em sua essência, ele é vazio” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 147).
Para Lacan, a criação se dá em torno do vazio, de modo que ele não concebe a criação como algo feito a partir do nada, ex nihilo: “o vaso é feito a partir de uma matéria. Nada é feito a partir do nada” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 148). Se fosse possível criar um mundo a partir do nada, por que, então, o mal faria parte desta criação? Neste ponto,
O exemplo do pote de mostarda e do vaso permite-nos introduzir aquilo em torno de que girou o problema central da Coisa na medida em que ele é o problema central da ética, ou seja – se foi uma potência razoável, se foi Deus quem criou o mundo, como é possível que, primeiro, façamos o que for, segundo, deixemos de fazê-lo, o mundo vá tão mal? (LACAN, 1959-1960/2008, p. 148).
A materialidade do significante – ou seja, a criação – e as noções de Bem e de Mal introduzem um caro ponto a Lacan: a discussão ética, a qual é retomada por Laurent no texto As máscaras da felicidade.
Neste texto, Laurent aborda a tendência presente na organização atual da sociedade de sustentar condutas que visam a acabar com o sofrimento psíquico – como se este pudesse ser exterminado das pessoas e, conseqüentemente, da sociedade. Ele ilustra esta tendência citando alguns estudos que propõem a eliminação do mal-estar decorrente de eventos que são desagradáveis aos sujeitos, e destaca a atuação de um reformador social britânico chamado Lord Layard.
Segundo este último, a felicidade e a infelicidade correspondem a áreas diferentes, ou melhor, separadas do cérebro; esta conclusão faz parte de um projeto que objetivava solucionar os problemas sociais decorrentes do desemprego na Inglaterra. Neste trabalho, Layard constatou que tais problemas poderiam ser solucionados se houvesse um aumento considerável da motivação dos trabalhadores, o qual seria possível simplesmente evitando ao máximo a estimulação da área cerebral correspondente à infelicidade.
Sendo o objetivo do projeto de Layard impedir o surgimento de idéias que acarretam sofrimento, a meditação foi utilizada como meio de treino para o cumprimento de tal preceito. Monges foram convocados para ensinar a arte de transformar experiências negativas em positivas por meio da prática meditativa. Laurent ressalta que parece ter havido um esquecimento do fato que a prática budista já esteve presente em ideais de guerras sangrentas; atualmente, o budismo faz referência a um modo de vida harmonioso, equilibrado e gerador de paz interior e exterior, representando um caminho que tem como fim a plenitude. As seitas budistas pregam que, a partir do desprendimento dos objetos, o homem pode passar de um estado negativo – o aprisionamento do sujeito pelas paixões – para um de pura harmonia.
Como resultado, foi constatado que alguns quadros depressivos não regrediam nem com as práticas meditativas, nem com qualquer outro tipo de Terapia Cognitiva Comportamental. Ao invés de tomarem este dado como um indicativo que põe em cheque os métodos empregados, foi criada uma nova categoria de depressão: as depressões resistentes. Disso se conclui que o que não responde como o esperado ao tratamento deve ser encerrado numa nova categoria. Percebe-se que, a partir da elaboração de inúmeras categorias e referências que excluem as particularidades dos sujeitos, e do consequente suprimento da subjetividade, uma nova ciência pode operar, seduzindo adeptos com falsas promessas.
Partindo da leitura deste texto de Laurent, percebemos que não são apenas as depressões resistentes que insistem em se manter fora das possibilidades de categorização, mas também algumas indagações, que permanecem sem resposta. Por exemplo, se a felicidade é plenamente objetivável, já que corresponde a uma específica área do cérebro, como se explica a falta de unanimidade na concepção geral de felicidade?
Neste ponto, é relevante nos referirmos à pergunta, citada anteriormente, de Lacan acerca da criação do mundo e da existência do mal-estar inerente a todos os sujeitos. A discussão ética em torno deste assunto reside naquilo que Laurent chama de insatisfação fundamental no espaço público – uma referência ao texto social de Freud Psicologia das massas, de 1921. As falsas promessas proferidas pelo tirano, pelo líder populista, geram o imperativo das exigências superegóicas que impelem o sujeito a gozar das substâncias produzidas pela organização social dominante. Ou seja, o Mal que está na matéria e que pode estar na Coisa (LACAN, 1959-1960/2008, p. 152) é intrínseco ao sujeito, e acaba por servir de instrumento para a sustentação do poder, que se concentra nas mãos daqueles que prometem o que não se pode cumprir.
Assim como existem depressões resistentes aos antidepressivos – que revela que o real do corpo é impossível de ser categorizado –, a psicanálise resiste à dominação dos imperativos superegóicos, evidenciando que nem todo possível é obrigatório e que a discussão ética e política é necessária.
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LACAN, J. (1959-1960). O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
LAURENT, E. As máscaras da felicidade. Felicidade e sintoma: Ensaios para uma psicanálise no século XXI. In: Fuentes Maria Josefina (org.), Veras Marcelo (org). Salvador: EBP Editora e Editora Currupio, 2008. (EBP).
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