Uma mentira de Freud?
Nótula sobre o artigo «Uber den Gegensinn der Urworte»
por Armand Zaloszyc
Eis então um artigo “Sentidos opostos das palavras primitivas” (1910), onde Freud pensa encontrar nos trabalhos do linguista Karl Abel, a confirmação da concepção segundo a qual “a expressão do pensamento no sonho [teria] um caráter regressivo, arcaico.” É “por acaso” nos diz Freud, que ele leu este “Gegensinn der Urworte” publicado em 1884 – uma afirmação, que de sua parte, há do que se surpreender: um acaso? Talvez, mas que não é sem ser chamado por uma necessidade. De qual tipo de necessidade se trata? Deixo por um momento a questão em suspenso, mas é claro que, uma vez lidos os textos, trata-se neste caso da questão decisiva, ou seja, a questão que decide sobre a própria existência deste pequeno texto de Freud, de seu lugar no contexto teórico da psicanálise.
Não há como não ficarmos mais surpresos ainda, ao ler a nota que Freud acrescenta a este respeito na sua interpretação dos Sonhos (G.W., p. 223) onde ele escreve: “encontrei em um trabalho de K.Abel [...] um fato, surpreendente para mim, mas confirmado por outros linguistas [...]”. Ora, Benveniste assegura-nos, que nenhum linguista classificado, nem na época que Abel escrevia (já existiam em 1884), nem desde então, conseguiu reter este Gegensinn der Urwote, nem com relação ao seu método, nem quanto às suas conclusões. E então? Seria isto uma mentira de Freud?
Foi em um texto de 1956, publicado no número 1 da revista A psicanálise, e retomado em Problemas de linguística geral, intitulado “Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana” que Benveniste empreende uma crítica, do ponto de vista da linguística, do estudo de Karl Abel sobre os sentidos opostos das palavras primitivas. Ele conduz esta crítica pelo detalhe, retomando a maior parte dos exemplos citados por Freud, para concluir que não podermos conceder nenhum “crédito às especulações etimológicas de Karl Abel que seduziram Freud.”
Mas, vamos nos deter à surpreendente construção do artigo de Freud. Ele cita, primeiramente, “como introdução”, uma passagem de sua Interpretação dos sonhos onde ele “expõe uma observação decorrente da pesquisa analítica que ainda não encontrou explicação: “A maneira pela qual o sonho exprime as categorias da oposição e da contradição é particularmente impressionante: ele não as exprime, ele parece ignorar o “não”. Ele extrapola ao reunir os contrários e a representá-los em um só objeto. Ele representa também, com freqüência, um elemento qualquer pelo seu contrário, de maneira que não se possa saber se um elemento do sonho, suscetível de contradição, trai um conteúdo positivo ou negativo no pensamento do sonho.” E Freud acrescenta então que foi ao ler, “por acaso”, a obra de Karl Abel que ele foi “levado a compreender esta singular tendência que possui a elaboração dos sonhos.” Depois disso, todo o artigo consiste em longas citações textuais das visões de Karl Abel até o momento de concluir à concordância do que se passa no sonho e do que se passa na “evolução da linguagem“.
O que resta desta concordância, uma vez levantado o discurso dos “linguistas qualificados”? A “retificação magistral trazida à falsa via, como diz Lacan, onde Freud introduzia a questão no terreno filosófico” nos intimida a simplesmente abandoná-la, como um erro em relação à verdade qualificada, quer dizer a verdade que podemos aqui qualificar de racional ?
Pode-se imaginar Freud (1910) aventurando-se nas exposições arriscadas de um linguista equívoco. Mas não é exatamente o contrário que acontece? Freud qualificando, confirmando, como ele pode, da ciência filosófica, já antiga, esta ainda audaciosa – para muitos – teoria psicanalítica. Ora, sobre o que é que ele encontra confirmação em Karl Abel? Daquilo que ele faz surgir como lógica do equívoco do significante. Mas isto na forma mistificada da anterioridade histórica, do estado arcaico ou primitivo, do mecanismo pré-formado, do estado regressivo, aí onde o originário é precisamente o modo de funcionamento da estrutura.
Mistificação que é propriamente ligada ao dispositivo teórico dominante, no terreno onde Freud polemiza, onde a psicanálise deve retomar e voltar contra esta racionalidade dominante, as armas que esta havia forjado a seu uso exclusivo e onde, desde então, o sonho, o ato falho, as diferentes formações do inconsciente só podem aparecer (visto que de toda maneira “isto não impede de existir”) em posição dominada: como mecanismo monótono, e, para citar uma expressão de Lacan, «alçado das profundezas, […] primitivo e que teria que se elevar ao nível superior do consciente», ou de uma racionalidade universal. Pode-se então retificar a apresentação do artigo de Freud: não, não é mentira, mas sonho, onde se finalizaria, deformado, o desejo de Freud, que será necessário bem interpretar. Não é a filosofia de Karl Abel que explica a teoria de Freud, mas a teoria de Freud que descobre a verdade das «especulações filológicas» de Karl Abel, e de Freud propriamente.
Tradução: Mª do Carmo Dias Batista
Tradução: Mª do Carmo Dias Batista
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