A CRONICA DE CLOTILDE, por C. Leguil
Disponível em: Lacan Cotidiano 70
THE ARTIST
OU COMO ATRAVESSAR O MURO DA LINGUAGEM
O drama de Georges Valentin, estrela do cinema mudo (interpretado por Jean Dujardin), desenrola-se entre 1927 e 1932: o artista se vê repentinamente considerado como um vestígio do passado quando o cinema torna-se falante, e escuta-se, enfim, as vozes dos atores e não se quer mais mímicas e caretas que substituam a fala verdadeira. Com audácia e sensibilidade, o diretor francês Michel Hazanavicius dá conta, com um filme mudo, de maneira paradoxal, humoristica e fina, do valor da fala. Ele nos mergulha no universo do silêncio, o das imagens que se encadeiam em música, para fazer-nos apreender o que falta, a fala própria que extrai o sujeito à esfera imaginária para introduzi-lo em suas próprias contradições.
Fazer um filme mudo no início século 21, como para retornar à idade dourada dos primórdios – quando grande parte da produção cinematográfica francesa e americana entrega-se aos artifícios cada vez mais sofisticados dos efeitos especiais, das imagens de síntese e outras proezas da tecnologia – já é uma tomada de partido audaciosa que atesta contra o caráter anônimo do progresso dos próprios meios, o desejo de reencontrar alguma coisa do objeto perdido de um primeiro cinema todo artesanal que estava nas mãos de metteurs en scène e de atores que descobriam a potência da sétima arte, ao mesmo tempo que a inventavam. Há então para o espectador de hoje uma forma de júbilo em reencontrar isto, além de evocações dos grandes filmes mudos da história do cinema, como Les lumières de la ville que Hazanavicius cita discretamente na cena final. Mas lá onde Charlot contemplava a jovem florista amada através da vitrine de sua loja, antes que ela o reconhecesse acariciando-lhe o rosto, dirigindo-lhe um “senhor?”[vous] silencioso que decifra com emoção numa caixa, é o seu próprio reflexo no espelho, repentinamente coberto por um figurino que vem se ajustar à sua imagem pelo efeito ilusório da luz, que Georges Valentin tem prazer em contemplar em silêncio, sempre sozinho com a sua imagem. É, por conseguinte, um filme sobre a história do cinema, e sobre esta passagem do mudo ao falante, mas é também um filme sobre a fagulha do amor e a impossibilidade de amar se não se fala, se não se consente em se arrancar do reflexo narcisista de sua própria imagem.
Mas o filme de Hazanavicius evocando o famoso Sunset Boulevard de Billy Wilder, se baseia num achado, da mesma ordem que o de Woody Allen em Deconstructing Harry quando ele inventa um ator que se torna incerto por natureza, ou ainda em Hollywood Endingum metteur en scène que perde provisoriamente a vista, no momento da filmagem tanto esperada do seu filme. Em The Artist, o mudo não é, com efeito, somente um traço da idade de ouro do cinema, mas a metáfora da escolha subjectiva do herói, da sua angústia e do seu sintoma, ele que se fechou num mundo sem fala, o mundo do reflexo de sua própria imagem que propiciando-lhe uma satisfação narcísica, desde que outros venham associar-se à esta contemplação. Mas o público quer, doravante, atores cuja voz seja escutada, e as mulheres também na vida verdadeira querem homens que lhes falem… Georges Valentin, murado no mundo silencioso da sua própria imagem, é abandonado pela sua mulher que não consegue arrancar-lhe uma só palavra que seja, e perde seu encontro com a picante Peppy Miller, tornada uma estrela do cinema falado. O silêncio não é então apenas o do cinema mas o de um sujeito que não quer cruzar o muro da linguagem para tomar a fala e arriscar uma resposta do outro que poderia fazer-lhe descobrir o quê ele não sabia sobre si mesmo…
Sim, há algo de uma referência à psicanálise na história de Georges Valentin. Enquanto Freud, no início do século, descobre que os sintomas histéricos podem desaparecer quando se deixa as pacientes falarem de seu traumatismo, Georges Valentin descobre que, recusando o falante no cinema e o falado na vida, ele recusa também o amor e se apaga na obscuridade do seu próprio ego. Se Peppy Miller, interpretado pela bela e fina Bérénice Béjo, chega então a tirar Valentin do seu desespero, é graças à centelha do amor, que permite a ela também sair da rivalidade com as estrelas de outrora para ultrapassar o “É ele ou eu”, que lhe escapa num lapso diante de seumetteur en scène (excelente John Goodman), e chegar a um “É ele e eu” que significa o seu desejo de fazer casal na tela e na vida com Valentin… The Artist nos mostra, assim, o valor da fala para além do estádio do espelho, valor que um filme mudo revela melhor que numerosos filmes tagarelas e hipertecnicizados que procuram, de acordo com os imperativos da época, reduzir a fala a um instrumento de comunicação desencarnado.
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