Disponível em Lacan Cotidiano 131
O saber-fazer da letra
Miquel Bassols
Miquel Bassols
Exposição de Perejaume em La Pedrera de Barcelona em fevereiro de 2012
Prolongada até o final do mês de fevereiro de 2012 .
Jacques Lacan, em seu tempo, nos fez entender que o artista nos precede em abrir uma nova via e nos ensinar como “a prática da letra converge com o uso do inconsciente”.[i] Com a condição, no entanto, que seja responsável por seu saber-fazer através de sua arte. É o caso do artista Perejaume, nos parece, e da expressão desua arte através da pintura e da escrita, passando pela videografia e da criação do que chamamos o “mobiliário urbano”. Mas, também o é em sua leitura da obra que já estava lá, pouco antes de ser vista e à espera de ser reencontrada, pelo olho do artista, na própria natureza. Dessa leitura, lhe veio o título da exposição que teve lugar em Barcelona em fevereiro: Ai, Perejaume, si veies la munió d´obres que t´envolten, no em faries cap de nova! - “Ah, Perejaume, se visses quantas obras estão a sua volta, não farias nenhuma outra nova!” Que bom que ele fracassa em vê-las todas, nos oferecendo a chance de observar e ler aquelas que soube fazer, a partir do uso da letra como visada primeira. Uma tarefa que parece jamais abandoná-lo, que não cessa de se apresentar a ele, que não o deixa sequer fazer outra coisa, insistente como se tornou a instância da letra no mais real de sua obra.
Observemos de inicío, a feliz contingência do lugar onde podemos visitar a exposição de Perejaume: é a famosa Pedrera - a Casa Milá, na avenida Passeig de Gràcia de Barcelona, do arquiteto Antoni Gaudi. Jamais um lugar foi tão apropriado para receber uma obra. A Pedrera– a “casa amassada”, como uma criança a descreveu uma vez - é como esse desenho no papel que se torna símbolo no momento em que, ao ser amassado, se torna uma bola, quando o sujeito procura um lugar para fazer o mundo habitável[ii]. A Pedrera – A Predeira em catalão - é também o lugar escavado na natureza para extrair a pedra e construir nossa casa. Como Antoni Gaudi, que teria instalado bem no meio da cidade, uma grande rocha extraída da montanha, modelada com tantas assimetrias como só o gozo poderia fazer – Gaudi significa “gozo” em catalão – para transformá-la, assim, no lugar por excelência, o lugar que pode fazer lugar na coisa, até fazê-la se tornar, ela mesma, um objeto, um objeto a ser lido em nosso mundo.
Mas, é o próprio Perjaume que o escreve, com todas as letras, na questão que insiste: “Uma coisa pode estar em um lugar. Mas um lugar pode estar em uma coisa?”[iii] Uma grande parte dos objetos presentes na exposição se oferecem como respostas possíveis a esta questão. A obra que nos parece estar mais em harmonia com o lugar e a significação da Pedrera de Gaudi – A Pedreira de Gozo, e também o gozo na pedreira – é a que o título de Obra em préstec – “Empréstimo de Obra” . É justamente uma grande rocha extraída de uma pedreira da região de Somerset (Grã Bretanha), associada a uma fotografia colocada sobre a parede atrás dela, onde se vê o lugar de onde essa pedra exposta foi retirada. Uma etiqueta informa o visitante: “This Stone has been temporarily removed for exhibition”. Mero gosto pelo paradoxo? Digamos que é o lugar da rocha na pedreira, o que é agora o objeto mesmo, aquele que, não por acaso, está realmente hoje na Pedrera. E é isso, para além ou aquém da coisa petrificada que nos é dada a ver, mas também mais além ou mais aquém da imagem fotografada de um lugar – a coisa e o lugar sendo impossíveis de decifrar por si mesmos – além portanto da coisa e da imagem, tornadas agora um objeto e um lugar graças, somente, à obra da letra. Com efeito, é só pela letra que nos é possível decifrar os sentidos de uma obra que se dá inteiramente a ler e que nos pede para ler cada coisa do mundo como um objeto em obra. É por esta razão que Perejaume criou um neologismo em sua língua para designar a operação de sua arte: Obreda[iv] - que pode ser traduzido em francês como Ouvrède e em português como Obrada.
Mas não é preciso que a letra esteja impressa em sua representação caligráfica, como é o caso mais manifesto em “Empréstimo de Obra”. Ela funciona muito bem, inclusive melhor, pensamos, sob a forma que J. Lacan definiu em seu ensino. Primeiro, como um suporte material que o discurso concreto empresta da linguagem ( Cf.” A Instância da letra...” 1957), um suporte material para ser veiculo do significante e de seus efeitos de sentido. E, depois, como um ravinamento, um resíduo, um dejeto, fruto da erosão que a linguagem que insiste produz no corpo, e que evoca o gozo, a satisfação pulsional mais ignorada pelo próprio sujeito (Cf. “ Lituraterra”, 1971). O ravinamento como a ação erosiva – e mesmo erótica – da linguagem sobre o corpo se iguala à ação da água da chuva quando corre sobre um terreno inclinado fazendo sulcos e rastros por onde os sentidos mais diversos de tudo o que nos é dado a ler no mundo poderão escorrer. A escrita é então esse ravinamento que Lacan podia encontrar, tal como ele próprio dá testemunho em Lituraterra: nas planícies da Sibéria vistas do avião entre as nuvens, em uma orografia feita de reflexos e de sombras, marcas construídas lentamente, mas de forma insistente, pela água na desolação do terreno. E também olhando “as auto-estradas que se superpõem umas sobre as outras como planadores vindos do céu”, na cidade de Osaka e que fazem e desfazem os nós dos percursos que vão de um lugar a outro: “Só há reta pela escrita, e passadas vindas do céu.”[v]
Aqueles que conhecem a obra de Perejaume já estão habituados a ler e seguir em suas composições os nós vistos do céu, formados pelas auto-estradas na superfície da terra, tranças que se formam e se desfazem numa espécie de escrita que ele fará aparecer também nas curvas de nível de cartografias variadas, por exemplo em Les letres i el dibuix (Les lettres et Le dessin, 2004). Como também suas cartas geográficas das montanhas e vales, que chegam, as vezes, a se transformar em saias que esvoaçam, plissadas por caminhos cuidadosamente desenhados pelas coordenadas da linguagem sobre o corpo, como em Els horitzons i les cintures ( Les horizons et les ceintures, 2007), por exemplo. Tudo se torna assim escrita que se dá a ler “sem a menor consciência do público”, titulo de um dos escritos de Perejaume:
Criar para nada, para ninguém, como essa brugalheira tão inencontrável, tão improvável de ser jamais vista por alguém. Quem conseguiria escrever troncos e galhos com a selvageria de uma brugalheira, e as senhas, solúveis, na brisa que a faz tremer.[vi]
Faz-se necessário, de qualquer forma, alguém que saiba ler esse estremecimento, um sujeito-suposto-ler, por assim dizer. Não é surpreendente, portanto, que Perejaume peça, até exija, uma posição que nos parece uma posição ética daquele que quer ler sua obra para descobrir “o que as palavras sabem e nós ignoramos ao dizê-las”[vii] , para compreender a escrita que as formas do gozo impõem ao corpo: “ Onde está o gesto de escrever? A quem ele pertence?”[viii]
Nesta mesma direção, Perejaume pendurará nas ruas da cidade, a seguinte frase, inscrita em dispositivos luminosos, que é também uma verdadeira questão para cada sujeito: “Alló que devem estar dibuixant amb les nostres formes de viure’ – O que devemos ser ao desenhar com nossas formas de viver. É verdade, essa letra, nós a desenhamos, nós a escrevemos, sem o saber. É justamente o que a hipótese do inconsciente coloca no momento de se constituir como sintoma – inclusive sinthoma no melhor dos casos – para cada um de nós. É uma razão suficiente para tentar ler a obra de Perejaume, ainda que somente na vertente de pintor. E é por esta razão também que respondemos, nestes dias, ao convite feito para apresentar e comentar, numa atividade da exposição aqui evocada, na Pedrera, a obra videográfica de Perejaume. Será a ocasião de um novo encontro do discurso analítico com o saber-fazer da letra do artista.
[i] Lacan, J. Homenagem a Marguerite Duras, do arrebatamento de Lol V. Stein, Outros Escritos, Jorge Zahar Ed. R. Janeiro,
[ii] Evocamos aqui o desenho da girafa que o pequeno Hans – famoso caso de Freud comentado por Lacan –amarrotou para transformá-lo em um símbolo, ao fazer dele uma bola de papel amassado: “Trata-se da transformação de uma imagem desenhada em uma bola de papel, que é inteiramente símbolo, elemento mobilisável como tal.” Lacan, J. O Seminário – Livro IV – A Relação de Objeto, Jorge Zahar Ed., R. Janeiro,
[iii] Perejaume, Pasègiques, Edicions 62, Barcelona, 2011, pag. 473.
[iv] Obreda é também o titulo de um livro de Perejaume, Edicions 62 – Empúries, Barcelona, 2003.
[v] Lacan, J. Lituraterra, Outros Escritos, Jorge Zahar Ed. R. Janeiro.
[vi] Perejaume, L´obra i la por, Galaxia Gutenberg, Barcelona, 2007, pag. 63.
[vii] Ibid.
[viii] Ibid.
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