21.5.12

■POSIÇÕES■


Disponível em Lacan Cotidiano 205
JACQUES-ALAIN MILLER
Lacan dizia que as mulheres eram as melhores
psicanalistas. E também as piores.”
“Uma grande desordem no real no século XXI” é a proposta de trabalho para o IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), que acontecerá em Paris em 2014. Jacques-Alain Miller é o executor testamentário dos textos e dos arquivos de Jacques Lacan. É quem organiza e estabelece os Seminários.Nessa entrevista exclusiva para o jornal argentino, NDLRJ Clarín, Miller revela por que as mulheres sustentarão forçosamente a prática analítica no século XXI. Ele se refere à desorientação masculina, lamenta não ter visto o filme “Shame” e explica o que quer dizer quando fala de “real”, um conceito às vezes difícil de reproduzir, tal como aquele do gozo feminino.
Uma entrevista de Jacques-Alain Miller, realizada por Pablo E. Chacón
A ordem simbólica não é mais o que era. Poderia nos dizer o que era e o que será?
O declínio da ordem simbólica não é um axioma da psicanálise. As mudanças se constatam, elas estão em todo lugar. No momento atual, existe uma outra ideia da família, uma outra prática, outros conceitos. O mundo de hoje é um mundo novo. A função do pai não é mais o que era. A mudança se iniciou na Revolução Francesa. Não esqueçamos que se cortou a cabeça de um rei! A Revolução industrial representa um outro ponto de inflexão. É o momento em que se começa a sentir o poder do capitalismo com os efeitos que (Karl) Marx tão bem descreveu: fazer apagar o que parecia estável, imóvel. Poder-se-ia, então, dizer que a partir deste momento, o pai não mais apareceu como o detentor da glória social e legal de antigamente. Ora, com a ideia de uma certa igualdade de condições, favorecida pela Revolução, a ideia do pater familias, que nos veio da Roma antiga, foi reduzida. Em seus romances, Balzac assinala a queda da imagem paterna no meio do século XIX. 
Em “A mulher de trinta anos”, em “O Pai Goriot”...
Exatamente. Nesse romance a paternidade se encontra degradada. Pareceria que o fato se reproduz no fio das gerações. Um século mais tarde, Hannah Arendt escreve um artigo sobre o declínio da autoridade nos Estados Unidos. É uma parte do desmoronamento progressivo de uma ordem simbólica que era antiga, forte. Lacan, que formaliza o Édipo, fez notar que a respeito da direção tomada pela história contemporânea, o pai (ou o Édipo) não esteve sempre à frente do show, do espetáculo. Não poderia durar. E estamos aqui. Observamos isso, presentemente, nos casos clínicos: nas decisões fundamentais que toma um analisante, o pai e a mãe têm importância equivalente. Mas pode-se sempre dizer que os símbolos são semblantes, ou construções tais como a nossa ideia do tempo, do espaço, da política, etc. Essas construções tiveram um começo, e podem terminar. (Ludwig) Wittigenstein desenvolveu tudo isso com jogos de palavras. Michel Foucault e Ian Hacking as desenvolveram igualmente à sua maneira. Trata-se de representações simbólicas em movimento, contrariamente ao real que permanece em seu lugar. Mas eu creio que devemos avançar nessa ideia de que o real foi também tocado. Um passo foi transposto.
O real foi tocado pela técnica.
Pela técnica, porque a técnica se imiscuiu no real, conquanto ela nos parecia desatada de nossa ação, de nossas possibilidades. A civilização penetrou na fábrica do real. A prova é esta: com uma bomba, podemos fazer desaparecer o planeta. Podemos destruir a natureza. Alterar o clima. Presentemente, modificamos até a espécie humana e segundo Peter Sloterdijk, nós a mudamos em um tipo de super humanidade... eu o felicito por seu otimismo! O fato é que se conseguiu entrar em uma zona completamente desconhecida. Tudo isso implica em consequências que são para pensar no nível da experiência analítica. Essa experiência, Lacan a tinha engajado na dimensão simbólica. Mas, no nível do real, nisso que resiste ao simbolismo, permanece alguma coisa que é uma acentuação do real, um super real. Evidentemente, isso não tem em absoluto um limite, mas se condensa cada vez mais. Isso é percebido sob a figura da destruição. Passou-se das “guerras amáveis” entre tropas, à destruição massiva de populações civis... é incontrolável. O movimento mesmo da ciência parece ser o espetáculo da pulsão de morte em ação. Mas tentemos dizê-lo de uma maneira menos romântica: o real foi tocado.
Como conhecê-lo? Como detectá-lo?
Bem. A ideia mais sofisticada do real na física matemática é a mecânica quântica. E até hoje os físicos e filósofos brigam para saber de qual real se trata quanto à essa mecânica. Não se chegou a nenhum acordo, o que descontentou a (Albert) Einstein. Mas esse terreno é fecundo para engendrar ideias barrocas porque não se compreende a natureza do real que se descobriu.
É como se não houvesse nada?
Sim, é alguma coisa assim. Pensou-se que isso podia ser os átomos até que se descobriu as partículas subatômicas. Ninguém está tranquilo com o real atual. Antes, o materialismo existia. Dizia-se: é a matéria. Entretanto, a matéria é muito distinta da ideia que tinham dela os materialistas do século XVIII, aquele de Karl Marx ou de Lênin. Com as consequências que se pode tirar para pensar nosso real na experiência analítica.
Em que sentido?
Lacan formaliza o inconsciente como um tipo de sistema com a ideia de alcançar um real científico. Fazendo grafos, com base em uma série de signos aleatórios – cara ou coroa de uma moeda – obtêm-se uma série devida ao acaso.Ele se dedicou a demonstrar que agrupando os símbolos via-se surgir uma lei. As possibilidades eram: um, dois, nunca, qualquer um dos dois, repetição. Era a designação de Lacan. O inconsciente existia com fundamento nessa lei: como os significantes se encadeiam, o que se chama “associação”. Lacan demonstra como se podia ordenar os casos de Freud, segundo um tipo de conexão particular: entre unidades significantes. Poder-se-ia dizer que é o inconsciente freudiano. Entretanto, Lacan define o inconsciente, no nível dessa série aleatória; dai não se pode saber qual será o próximo símbolo porque a contingência existe.
E em análise?
O que se produz de mais íntimo em uma análise ninguém pode saber por antecipação. A ideia da ciência, justamente, é que tudo se pode saber de forma antecipada, pode-se prever – uma lei pode dizer “isto é possível”, “isto é impossível”, etc. Se, por exemplo, pensa-se o encontro sexual entre dois seres, não existe uma lei prévia, não há um programa, enquanto os animais são programados. Ora, para a espécie humana, há uma parte do programa que não se encontra escrita. É o que Lacan nomeia a inexistência da relação sexual.  Há um buraco no real. O real do sexo, na espécie humana, não diz nada: não existe senão a contingência, a invenção e a construção, ou seja, os semblantes. O casamento, em certas culturas, é com uma só (mulher), em outras com quatro, ou bem com uma a mais ou com três, ou ainda elas são escondidas. Cada cultura detém sua originalidade. Mas não se encontra cachorros que copulam de uma certa maneira na China e de outra na Argentina. A natureza é constante.
E não existe nenhuma constância para o ser vivente?
O que parece ser uma lógica geral é que os primeiros encontros com o gozo do corpo deixam marcas que não se apagam. É muito curioso. Porque os encontros são ao acaso, contingentes. Nas estruturas clínicas, o encontro com o gozo é bastante desmedido, ele não é previsto. Em geral, ele é “traumático”, e deixa uma marca. Pode-se encontrar este ponto nas conexões significantes. E deve-se encontrá-lo. Não se pode deduzi-lo.
Eu estou curioso... O senhor viu o filme “Shame”? Ele conta uma história...
...Não me conte, vou ver o filme. Eu ouvi falar de um vício com o sexo. Em princípio, eu recomendo ler o último número de “Registros”, que trata dos homens. Está muito bem, muito engraçado. Para voltar à sua curiosidade... os homens são os antigos mestres, decaídos, degradados, por causa da emergência das mulheres. E, realmente, como esse fenômeno é relativamente recente, os antigos mestres se encontram desorientados. Os homens não se situam muito bem face à feminilidade (femineidad) que emerge, revindicando mudanças em muitos domínios. A cultura ainda está armada para controlar o gozo feminino, que é incontrolável.  Mas, desde o começo da civilização, isto era um fator que se precisava dominar, enquadrar, controlar. Os tempos mudaram. No presente, o diabo saiu de sua caixa.
O diabo?
O gozo feminino tem verdadeiramente o poder de perturbar todas as categorias. As culturas podem se pensar como maneiras de conter o gozo feminino. Sem sucesso. As profissões se feminizam. E por que se teria de resistir à feminização? As mulheres sustentarão certamente a prática analítica no século XXI. Lacan dizia que os melhores analistas eram mulheres. E também os piores...
O que o senhor pensa da sociedade do espetáculo que Guy Debord teorizou?
Debord tinha uma maneira de tratar a vida cotidiana como constituída pelos semblantes. Mas ele acabou se suicidando. Suponho que ele tenha encontrado alguma coisa que não era da ordem do espetáculo...
▪ O real...
Pode-se supô-lo. Às vezes, os espíritos mais ágeis, os mais irônicos de uma geração, terminam esmagados. Sob as aparências, eles suportam tudo. É o que o analista sabe. Ele sabe que o homem de negócios que tem sucesso pode vir ao seu consultório e mostrar aí uma outra face.
Nunca houve tanta gente no Congresso da AMP?
Que alegria uma tal afluência, tantos jovens latino-americanos, europeus. Isto parece o testemunho de que temos transmitido alguma coisa. Transmitido e atualizado. A Escola da Causa Freudiana, em Paris, tem também suas coordenadas transversais. O que quer dizer? Pode-se então apelar à psicanálise para responder aos problemas contemporâneos. Creio que à medida em que a sociedade do controle se reforça, impasses inéditos têm dado à psicanálise uma nova urgência, tanto no nível terapêutico quanto no do pensamento.
Qual é a sua opinião sobre as novas tecnologias concernentes à comunicação?
Fundamentalmente positiva. Há vários anos, em 1994, quando a Internet foi introduzida em nossas correspondências, eu me lembro de ter escrito uma intervenção, no avião que me levava à Buenos Aires, dizendo que iríamos assistir a três épocas na AMP. 
Três épocas?
Escrever e enviar cartas postais não permitia a uma associação mundial viver. Era muito lento. Em seguida, a segunda época: o fax, que permitia a criação da Escola Europeia de Psicanálise, da qual fui presidente os três primeiros anos. O fax permitia reunir os grupos e as seções da Espanha e Itália com uma certa rapidez. E no avião eu tinha a impressão – nunca experimentara antes – que o correio eletrônico era o instrumento que iria permitir criar a AMP. Com a vantagem de publicar sem estar limitados ao papel. Estamos bem informados dos trabalhos dos outros grupos. Isto vai se desenvolver. Com a AMP, suas sete escolas nacionais, constituímos verdadeiramente uma Escola Una. Isto não teria podido se dizer antes da chegada dessas novas tecnologias.
Por que o senhor pensa que a psicanálise exerce uma influência mais importante nos países católicos que nos protestantes?
Isso nem sempre foi assim. Lacan teve muita dificuldade para ser escutado na França. Tinha alguns alunos na Bélgica e na Itália. Ele se dirigiu duas vezes à Espanha, respondendo ao convite de um professor, mas nessa época os espanhóis não iam para análise em Paris. O fim do franquismo político se produziu após a morte de Lacan.
E os Argentinos?
Lacan conheceu Oscar Masotta. Ele o apresentou a mim, anunciando-o de dessa forma: “meu discípulo, meu aluno”. 1978 é o ano em que os primeiros Argentinos chegam a Paris para ver Lacan. Alguns puderam vê-lo. Mas o movimento estava em seus inícios e Lacan estava prestes a morrer. Os Argentinos que haviam feito a viagem eram Roberto Harari, que fundou a Maiêutica, Jorge Chamorro, que está na EOL, e outros... Mas, o encontro que tive com Diana Rabinovich se revelou decisivo para mim. Ela me convenceu a ir Caracas, onde se encontrava em exílio. Em 1979, eu me encontrava pela primeira vez na América Latina, e percebi a importância que tinha Lacan no mundo latino. Esta foi a ocasião para eu descobrir também um outro mundo do qual não tinha ideia. E eu achava que Lacan poderia também conhecer esse mundo. Ele aceitou imediatamente e, apesar de sua idade, se deslocou para a Venezuela em 1980. É uma história de países católicos, de cultura latina.
Na Alemanha, Lacan interessa a alguns grupos, do ponto de vista intelectual. Nos Estados Unidos, o mundo universitário, os filósofos, os críticos literários o apreciaram, para os estudos culturais, a cultura, o tipo de desenvolvimento, o estilo. Praticamente ninguém teve acesso à sua prática clínica. Alguns grupos existem, mas, sobretudo como fenômeno marginal. A Europa do Leste estava em estado de congelamento. Mas desde seu degelo, a IPA (International Psychoanalytical Association) se manifestou primeiro. Entretanto, temos alunos e analisantes na Rússia. Estamos ativos também nos Países Bálticos, embora a imprensa norte-americana – a que se opõe à clínica do singular – seja aí também muito forte.
E no Oriente?
O Japão interessava a Lacan. Os psiquiatras japoneses têm traduzido muito seus Seminários, entretanto o país permanece um enigma. A China é um outro mistério sobre o qual Lacan se inclinou muito. Eu recebi numerosas propostas para viajar para lá. Não o farei ainda, mas certamente no futuro, por interesse cultural, para saber como Lacan é transmitido lá. Lá existem analistas lacanianos que funcionam muito bem, dos quais alguns se formaram em Paris.
Na China, conforme o que eu ouvi, o individualismo não existe.
É, certamente. E em psicanálise também não. Mas é certo também que o capitalismo se encontra em tensão nesse país comunista. Os Chineses são os leaders de nosso tempo. De toda a evidência, há falhas. A China não parece estável ideologicamente. Portanto, eu suponho que nas condições atuais, as autoridades aceitarão apenas um certo tipo de analista, dócil ao enquadramento social e legal. Isso poderá mudar no futuro. De fato, quando eu comecei a campanha de liberação de Rafah Nached, psicanalista síria, o Ministério dos Negócios Estrangeiros de meu país me disse que obter as assinaturas dos países recentemente tornados amigos da Síria, como a China, me seria de grande utilidade. Mas os diplomatas não acreditaram que isso seria possível. Eu consegui entretanto obter que alguns chineses assinassem uma petição para a liberação de Rafah, sem dúvida em termos gerais e protocolares. É bom sinal. Isso mostra que mesmo quando tudo é controlado por um partido, um número de coisas se coloca lentamente a evoluir. Bem entendido, se Lacan entra na China, eles vão quer um Lacan “chinês”, eles vão desejá-lo “sem sal”.
Como seria um Lacan “chinês”?
Bom, é preciso aceitá-lo. Em princípio, eu creio que eles desejam aprender do Ocidente alguma coisa que responda a uma via “chinesa” de Lacan. Mas isso não mudaria nada para Lacan. Se eles se apropriarem de seu pensamento, descobrirão Lacan em suas zonas inadmissíveis. Lacan se interessava muito pelo pensamento da antiguidade chinesa. Poder-se-ia dizer que ele também foi avançado nesse ponto 
Agradecemos a Marie-Christine Jannot por seu trabalho de tradução.
Versão francesa não lida pelo autor. NDLRJ.


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