5.5.12

SOBRE À ESCUTA EM PSICANÁLISE...


▪ CRÔNICA - A vida como ela vai ▪
Disponível em Lacan Cotidiano 122
Uma história interessante
Por Pierre Stréliski


«Uma paciente que curei numa outra ocasião de uma grave neurose, com uma dedicação imensa, tem decepcionado minha amizade e confiança da maneira mais ofensiva que se possa imaginar, porque eu lhe recusei o prazer de conceber um filho com ela» escrita de Jung a Freud na primavera de 1909. Dois dias depois ele acrescenta uma carta: «Eu realmente nunca havia tido uma amante, eu sou verdadeiramente um marido o mais inofensivo que possa imaginar». Freud reafirma sua amizade ao jovem colega no qual ele vê, lhe escreve comparando a si mesmo à Moïse, «o Josué destinado a explorar a terra prometida». É verdade que Jung é um jovem polonês — alto de 1 m 85 — com trinta anos, que se beneficia do prestígio de Freud por ser um psiquiatra da mais celebre clínica psiquiátrica de saúde mental da época, a clínica Burghölzi de Zurique, médico adjunto do grande Bleuler, que não amava a psicanálise que nascia, mas os seus trabalhos sobre a esquizofrenia foram autorizados, e mais, por não ser judeu, como a maior parte dos « miseráveis » apaixonados em torno de Freud.
Sua paixão por esses dois reenvia à 1907, onde Freud sonha tornar sua ciência mais «ariana», sua nova ciência é mudar seu núcleo de Viena à Zurique. Desde 1908, primeiro congresso de psicanálise à Salzbourg, que Jung já ocupava um lugar de destaque. No verão de 1909 ele fez parte da pequena tropa que partiu ao Novo Mundo fazer uma série de conferências na Universidade Clarke. Um primeiro problema aparece entre eles durante a viagem, depois que Jung um pouco embriagado, disserta sem fim sobre os corpos mumificados encontrados em um pântano na Alemanha do Norte, foi cortado por Freud por um seco «Por que se preocupa tanto com os cadáveres?», e uma segunda quando Freud recusa, para «não por em risco sua autoridade» dizer muito sobre um sonho que teve com sua cunhada.
Apesar disso, Jung será o primeiro presidente da IPA. Ele se demitiu em 20 abril 1914. Nesse tempo seu idílio se tornará vinagre. Jung será responsável por dois desmaios de Freud, um no instante onde ele percebe que este filho ideal é um Brutus, e o tom de sua correspondência irá mudar consideravelmente: «O Senhor quer ajudar, nisso que invade a vontade dos outros. Sua atitude deveria ser mais aquela na qual oferece uma oportunidade que podemos aceitar ou recusar». E a um outro colega, Freud escreve: «Jung é uma pessoa incapaz de suportar a autoridade de um outro, ainda mais incapaz de impor sua autoridade e cuja energia consiste em uma busca sem escrúpulos de seus interesses pessoais». De fato!
Mas chegou a primavera em 1909. Em 30 de maio, a jovem mulher incriminada escreve a Freud. Ela quer encontrá-lo. Ela se chama Sabina Spielrein, é uma jovem judia russa de 23 anos, estudante de medicina e foi assistida por Jung desde 1904, inicialmente na Burghölzi, em seguida em sessões, como uma «psicose histérica» — diagnóstico que retoma a antiga «loucura histérica», ótimo paradoxo sobre a função paterna, entre Bejahung e Verwerfung, diagnóstico diferencial da esquizofrenia belamente descrito nos anos sessenta por Chazaud e Follin: «O esquizofrênico vive o drama da existência de sua pessoa; o psicótico histérico vive o drama de seu personagem». Sim, mas se a pessoa verdadeira é seu personagem? De qualquer forma, nossa jovem russa foi objeto da primeira experiência de Jung na aplicação do «tratamento psico-analítico» de Freud, antes mesmo que ele o tivesse encontrado, baseado na única leitura entusiasta da Interpretação dos Sonhos. Esse talking cure, como chamava uma de suas primeiras analisantes, teve um sucesso terapêutico inegável, os violentos sintomas ligados ao recalcamento frente a uma situação incestuosa e apresentando características sexuais sádico-anais, cedeu e se transferiu à pessoa do terapêuta. E logo descobriram gostos em comum - a música, Wagner —, as mesmas intuições; a análise feita pela analisante de todas suas qualidades — de uma inteligência segura — que ele achava: «Os espíritos como o seu avançaram a ciência. Você deveria absolutamente se tornar psiquiatra». Finalmente se passa do divã ao leito, mas não é isso que Sabina queria tratar com Freud, mas a derrota de seu amante que, sentindo-se de lado como marido e amante, escreveu à mãe de sua amante… para que ela os separasse! Ele se defendeu de sua própria fraqueza com uma bela grosseria («Uma grosseria», escreveu-lhe) discutindo que a diferença entre um médico e um amante gira em torno da questão do pagamento (Com o que pagamos?) e alegando in fine o montante de seus honorários para a mãe de Sabina! O pagamento —merecido — que ele recebeu da donzela foi um retorno furioso quando ela descobre a carta, isso será um tapa e um projeto significando in vivo o corte de canivete sobre o contrato.

Finalmente o amor entre eles dois, contrariamente aquele entre Freud et Jung, sobreviverá a esta violenta cena. Eles se tornaram amantes, Jung dirigiu mesmo a tese psiquiátrica de Sabina. Ela o ama, ele a ama. Não estamos verdadeiramente diante de uma  cartografia da erotomania. Mas bem dentro daquelas dúvidas que sucedem aos amantes: «Portanto, ele está certo que ele me ama. Mas existe sempre "Mas", escreve Sabina em diário, visto que meu amigo é casado".
Um tempo depois ela irá efetivamente encontrar Freud. Em 1911, ela lhe inspirará para escrever um artigo sobre «A destruição como causa do devenir» que será uma das matrizes, a qual está inconsciente ou escondida, da futura pulsão de morte que Freud desenvolverá depois da guerra de 14/18. Em 1913, ele lhe escreve : «Minha relação com vosso herói germânico está definitivamente rompida. Seu comportamento foi muito desagradável. Meu julgamento sobre ele se modificou muito depois de sua primeira carta».
   
Em 1912, ela se casa com um russo e vai para a Rússia — que se tornará l’URSS — em 1923, onde vem a criar uma associação psicanalítica. Em 1936, esta associação será dissolvida e Sabina desaparece nos purgas estalinenses.
O único traço que restava dela, uma nota no pé da página do texto «Além do princípio do prazer», antes da descoberta em 1977 em Genebra, dentro de uma caverna antiga do Instituto de Psicologia, uma correspondência copiosa e esquecida entre Jung, Freud et Sabina Spielrein, e de seu diário.
Este retorno do recalcado fez ruído no meio psicanalítico e mesmo além dele. D.-M. Thomas no Hotel Blanc foi inspirado por esta história? O apagamento de um nome próprio fez também eco à nossa atualidade lacaniana mais fervente.
É esta eterna verdade que o amor não se deixa facilmente governar pela razão, que o gozo e a pulsão dominam os ideais, que na psicanálise «a transferência é às vezes o motor poderoso da cura e o fator principal da resistência», que os homens são covardes ou infelizes— compartilhando o aforismo de Freud: «Lá onde eles se amam eles não se desejam, lá onde eles não se amam eles se desejam», que as mulheres são loucas, mesmo se Lacan acrescenta «não loucas de todo», entretanto além dos limites da angústia de castração, que a história do movimento psicanalítico é cheia de rumores e sussuros, de rivalidades e velhos ódios inatingíveis, à época ao menos onde ela crê que vai dominar o mundo, que nossas histórias foram submetidas quando se acreditava na História com um H maiúsculo, tornam evidente atrair um cineasta como David Cronenberg.
Esta coisa feita com A Dangerous Method, crônica fiel deste episódio da história da psicanálise, mostra uma autonomia à Mostra de Veneza. Uma adaptação da peça A talking cure de Lionel Hampton — que é também cenarista do filme —, a crítica do filme foi mista. «Um filme apaixonante» para A. Romanazzi, «Um filme no limite de tédio» para outra crítica; Lorenzo Bianchi alega «a estatueta de um Oscar» para Keira Knightley (que interpreta Sabina Spielrein no filme), enquanto outros pensam ao contrário se sua atuação «pouco inspirada»; «um diálogo brilhante », « Um filme acadêmico », etc.; é ainda Libération durante o lançamento do filme na França que terá o título mais engraçado: «Meninges à três».
No mais, em Veneza, nada de Leão de ouro para Cronenberg. Ele é verdadeiro como Aronowski (Réquiem para um sonho, Cisne negro) para o  presidente do júri, este filme tem uma estética fria com poucas chances de ser o vencedor. Finalmente, todo mundo disse, com A Dangerous method, Cronenberg não é mais Cronenberg. O cineasta ainda sombrio em um underground de seus primeiros filmes propôs aqui uma imagem clara e ambígua como a superfície de água do lago de Zurique que Jung contempla no fim do filme e como um sonho que ele tem  premonitoriamente lhe fez ver transformada numa área de sangue.
Mas não é sempre a mesma questão da unidade e da fala (da história) que explora o cineasta canadense. Somente quando ele mostrou a densidade da carne, que ele mostra a realidade da carta. E preciso apreender a importancia do genérico que permanece na escrita de uma carta, de quem a quem? Sabemos.
O formidável Fassbender que interpreta Jung em protesto abafado não é diferente do Fassbender que interpreta o herói hipermoderno de Shame. (Mas Fassbender terá o preço de sua atuação em Veneza por Shame). Eles são antípodas mas é o mesmo personagem tomado pelo gozo. Em um filme ela é ainda ligada aos ideais, noutro ela é desligada, puro «pedaços de real».
E Sabina é a irmã de todas as mulheres como propõe Marie-Hélène Brousse, em elogio da histérica ». Ela é o duplo real de uma outra analisante, a heroína de D.-M. Thomas, Lisa Erdmann, que diz : «Se eu não penso sobre o sexo, eu penso sobre a morte. Às vezes os dois juntos». Thomas acrescenta que ela diz «num tom amargo». Sabina Spielrein está de acordo ao que Lacan disse sobre as mulheres analistas, algumas vezes mais à vontade que seus homólogos masculinos com o real. Analisando um de seus sonhos, ela escreveu (em 1913): «A experiência nos provou que a transferência, abrangendo tanto os sentimentos de ódio e de amor, é sempre uma faca de dois gumes». E Freud lhe fez homenagens, lhe escrevendo: «Sendo mulher você tem o privilégio sobre os outros de observar com mais fineza, e de sentir com mais intensidade os afetos sobre os quais você tem a medida».
Viggo Mortensen, enfim, ator fetichista de Cronenberg, é um Freud de convincente a irônico, um pouco distante. É sem dúvida o rosto de Cronenberg ele mesmo que atua aqui, isso porque nós preferimos Freud de Benoit Jacquot que era mais vivo, que acreditava, ele, em qualquer coisa, psicanálise talvez.
Após ter visto o filme, uma espectadora me disse, alfinetando: «Não é tão interessante. São pequenas histórias». Sem dúvida, mas estas pequenas histórias são também o coração de nossas vidas e também o coração de nossa querida psicanálise. Lacan ensiou que o estilo é o objeto, agradecemos à Cronenberg por nos mostrar que as facetas de um mesmo objeto podem refletir as variações invertidas de um mesmo sujeito. Finalmente avançamos que A Dangerous Method será para Cronenberg isso que Barry Lindon foi à Kubrick : uma obra cuja violência se exprime dentro de um céu de azul glacial. 

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