6.5.12

SOBRE À ESCUTA EM PSICANÁLISE...


 Primeiras topografias do Seminário V (I) 
Jacques-Alain Miller
Disponível em Lacan Cotidiano 99

 












Os seguintes comentários foram pronunciados por Jacques-Alain Miller no seminário Diva, em 17 setembro de 2011. Ao lado dele, houve ainda duas exposição dedicadas às Formações do Inconsciente [Zahar, 1999]: a primeira de Aurélie Pfauwadel, centrada na função do pai em “Os três tempos do Édipo” (capítulos X e XI do Seminário V); a outra de Anaëlle Lebovits-Quenehen, sobre o desejo e o gozo (capítulo XIV, desse mesmo livro).
Convidada para este seminário, dei-me conta de que havia uma verdadeira mina epistemológica e metodológica, muito útil a todos (as) um (a) cada um (a). Seria lamentável privar os leitores e leitoras do Lacan Cotidiano. Como Lacan o construiu? Como fisgar o fio que o anima durante o seu Seminário? Em quais condições podemos aproveitar seus enigmas e extrair daí alguma coisa? E nós, como estamos construindo nossas intervenções? Estabelecendo o texto que se encontra abaixo, ocorreu-me que esses comentários compõem um conjunto. Foi dessa forma que eu o submeti a J.- A. Miller que aceitou publicá-lo.
Pascale Fari

Do teatro à estrutura

Nos três tempos do Édipo, tal como Lacan desenvolveu nesse Seminário, a mãe assume a figura do Outro caprichoso até o momento em que o pai intervém para re-estabelecer a ordem – é um racionalização que pressupõe a existência de um Outro do Outro. Eu havia outrora evocado esse capricho, a imagem que dela se tem, o fantasma do capricho feminino: é o real sem lei, o real caprichoso e, ocasionalmente, aquele das mulheres com as quais não se tem certeza sobre qual pé dançar. Em uma universidade norte-americana, retomar esses termos sem todas as precauções de rigor seria passível de ejeção!
É como na música de Charles Trenet, Papa pique et maman coud (Papai corta e mamãe costura). Nesses capítulos, os papéis são precisamente distribuídos: a mãe cuida da criança, da higiene de seu corpo, o pai volta do trabalho, calça seus chinelos, escuta o rádio… Toda uma época! Sabe-se quem faz o que. Em 1966, eu jamais teria a idéia de dar banhos em meus filhos. Hoje, os pais colocam talco em suas crianças e tiram licença paternidade, enquanto as mães trabalham. Após 45 anos, as coisas não são mais assim. Elas mudaram bastante – e de alguma forma em sentido muito lacaniano. Lacan se questionou sobre a participação dos pais na experiência da couvade [antes do parto, o marido se deitava na cama imitando estar grávido e recebia visitas] em algumas populações primitivas. Mais qual será a relação do bebe-proveta com a proveta e com sua mãe…? Experiências da neurociência chegaram à conclusão de que alguém deve olhar e falar com o bebê porque isso faz bem para os neurônios. Por vias mais empíricas, Lacan chegou à ideia de que o sujeito deve, de fato, ser tomado pelo desejo do Outro.
A mãe diz Respeite teu pairespeite a palavra de teu pai etc., tudo isso é um teatro, em certo sentido. O importante é que Lacan aborda as coisas de modo estruturalista. Seria ótimo se me explicassem que isso é ultrapassado, de outra época, mas a grandeza da coisa consiste em distinguir o elemento e seu lugar em um sistema, sua função. Um lugar pode ser ocupado por elementos diferentes que assumam daí em diante uma função, não levando à  sua substância. É o exemplo da carta roubada, que feminiza aquele que a detém, primeiro a Rainha, depois o ministro e em seguida Dupin; a carta possui certo poder, e sua substância é então transformada. Aos seres de carne se sobrepõem uma grade, um sistema de lugares que modificam a substância do ser. Por exemplo, pode acontecer de um gerente, antes intratável, transformar-se em um trapo logo que fique desempregado, pois, ao perder o significante “posto de trabalho”, ele perde algo de essencial; ou ainda que um glorioso personagem se decomponha logo que sua mulher o deixe.
Com efeito, o universo estruturalista dessubstancializa. De forma que, uma vez posta essa armadura feita de elementos, lugares e funções, isto que o ocupa, que o completa, as cores, as carnes… tudo isso é bem mais interessante. Seu objeto responde a tais e tais especificações, mas a forma pela qual as coisas se encarnam é sempre cheia de surpresas, de descobertas. Algumas vezes, os estruturalistas foram acusados de não amar a história. Ao contrário! É apaixonante acompanhar o surgimento das estruturas na história, sua encarnação em função das contingências. No livro A vida de Lacan eu evoco a floculação ou a precipitação do discurso da ciência no século XVII. Na Inglaterra, ela toma a forma de uma precipitação de partículas em um sólido: a primeira Academia científica é um clube – o que mais se faz na Inglaterra?! –, a Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge; os primeiros físicos eram Gentlemen que, sem meios para repetir a experiência do vizinho, deviam ter fé em sua língua.

O jardim à francesa do texto de Freud

A primeira dificuldade que Lacan procura resolver é identificar a construção freudiana: o que Freud estabeleceu, buscou e nos trouxe? No caso dele, que há antes uma prevalência da mãe. Desse primeiro objeto, que é a mãe, o investimento do sujeito se desloca, em seguida, para o pai.
A matéria primeira do Seminário V é o texto de Freud – enriquecido, bem entendido, da experiência de Lacan, mas porque ele se apega a esse fio. Por trás de seu desenvolvimento, há, de algum modo, o desejo de colocar Freud em uma forma. Sua oposição entre  metáfora/metonímia é muito potente, mas implica algo de forçado. A mãe é a Rainha, não da noite, mas do imaginário; não é mais o Papa pique et maman coud, é o pai simbólico – quase PIqUE... – mas do imaginário. Ora, para que a metáfora funcione é necessário transformar a mãe em significante. Lacan consegue solucionar essa dificuldade valendo-se do vai-e-vem da mãe que se assimila a um significante que surge e desaparece. É uma solução elegante ao problema. É muito forte. Quem vai negar a necessidade de que a mãe fique muito perto da criança e, se não, que as coisas não funcionam? Muito justo. Mas não se pode perder de vista o problema que ele devia resolver: o termo “DM” – desejo da mãe – é uma âncora para que a fórmula da metáfora funcione. Não digo que não, que seja falso ou que não esclareça, mas ele não possui a mesma consistência do pai simbólico. Em seguida, Lacan não recorrerá mais a essa equivalência entre o desejo da mãe e o batido significante ausência/presença.
Quando Lacan evoca então a criança em termos de assujeitado, o primeiro assujeitado é ele próprio ao texto do Freud. Na floresta freudiana, ele lapida, como diz, um jardim à francesa. À época, criticava-se o estilo germânico de Freud, as brumas do Norte, muito distantes do sol do Mediterrâneo, não eram para os latinos, não convinham ao gosto francês. Lacan jamais deu importância para isso. Foi, entretanto, a opinião de Édouard Pichon – aquele de Damourette et Pichon –, que era não apenas linguista, mas também analista; esse maurrassiano integral pensava que era necessário estilizar, afrancesar Freud, da mesma maneira que os chineses pensam hoje que é preciso achinesar Freud e Lacan. Este, ao contrário, leu Freud em alemão e colocou-se no interior de seu texto. Não tentou afrancesá-lo, mas deu-lhe uma ordem, digamos, clássica a ponto de dizer que ele fazia de Freud um jardim à francesa, com vias bem retas, grandes perspectivas, ângulos bem torneados – o que é o apogeu da liberdade espiritual.
Sua matéria primeira é então o texto de Freud. De resto, não se lê isto dizendo: “Mas onde está então a minha identificação?” Um colega, Andalou de Grenade, compôs uma vez uma canção muito engraçada: A donde esta, a donde esta, el objeto pequeño a?Com efeito, se virmos as coisas a partir do último ensino de Lacan, há uma parte de fantasmagoria conceitual.
Esta matéria textual, ele a trabalha com conceitos. Esta foi a grande abordagem conceitual de d’Althusser: parte-se de uma matéria textual, mistura-se, trabalham-se os conceitos, que constituem a generalidade 2, para que se extraia o núcleo, isto é, a generalidade 3. Há qualquer coisa desta ordem aqui. Esta matéria primeira que constitui o texto freudiano, Lacan passa no mix da oposição saussuriana entre significante e significado, da diferença entre metáfora e metonímia – extraída do artigo de Jakobson, “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”, publicado dois anos antes. Jakobson distingue duas formas de afasia observando que elas tocam o eixo paradigmático e o eixo sintagmático da linguagem. O eixo sintagmático refere-se à articulação da frase, por exemplo “O camelo se desloca no deserto”; o eixo paradigmático diz respeito às opções que se apresentam, a cada momento – a classe em meio às quais escolhe-se tal ou qual palavra, poderia ser por exemplo, “o dromedário” ou o “automóvel” – o que constitui, antes, as opções virtuais acumuladas.
Jakobson simplificou de forma genial a retórica, agrupando quase todas as grandes figuras de linguagem na chave metonímica; ele estabeleceu assim um tipo de divisor de águas com a metáfora em que o termo que se substitui pelo primeiro não tem relação com este. No verso de Victor Hugo, “Sa gerbe n’était point avare ni haineuse” [“Seu feixe não era avaro, nem odioso], “sa gerbe” está no lugar de “Booz”. Evidentemente, se bem procurado, pode-se sempre encontrar uma relação – Lacan, nessa passagem, já adianta que toda linguagem é metonímica.
Dizer que a matéria primeira de Lacan é o texto de Freud é dizer também que a experiência não é toda nua. É muito difícil despir a experiência. Talvez Lacan o tenha conseguido em seu último ensinamento. É como uma dançarina que tira os  seus sete véus: quando o sultão lhe pede muito, só lhe resta retirar a casca! De certa forma, o último ensinamento de Lacan é a esfola, o esfolado.

Descrição naturalista vs postulação à lógica

Lacan sustenta uma causa e, como excelente advogado, mobiliza para tanto ótimos argumentos – isto é, aqueles que se acredita completamente naturais. Orador, retórico, sofista, ele também se orgulhava de poder convencer não importa o que a não importa quem. Ele dizia, posso dar não importa qual sentido a qualquer palavra se vocês me permitirem falar por muito tempo.Bom, há então um limite, é necessário que isto pare em dado momento, não temos todo o tempo, as baterias do telefone se descarregam... caso contrário, pode-se demonstrar tudo e o contrário de tudo, isto é bem conhecido e é bem isso o que se faz na experiência analítica. Para que as palavras se sustentem é preciso recorrer a sessões curtas e mesmo ultracurtas, pois quando usamos mais que uma palavra, deixa-se tecer o merino por horas.
O importante é saber que não se trata de uma descrição: cada elemento trazido por Lacan insere-se em seu argumento e em sua demonstração. Não se trata de forma alguma de uma descrição objetiva da situação, mas orientada pela demonstração que o ocupa no momento. Que a coisa seja extremamente bem feita não muda o fato de que estes são os argumentos que sustentam a sua tese, sendo então necessário situá-los como tais. É totalmente possível, se quisermos, encontrar argumentos contrários; as coisas não têm caráter algum de evidência. Na psicanálise, de alguma forma, tudo é bom: que se diga sim ou não, não é isto que se sustenta.
Como então se prevenir de uma armadilha lógica? Procura-se, bem entendido, uma lógica, uma lógica da causa, uma lógica da cura, etc. Com efeito, ela se caracteriza pelo fato de que, em dado momento, após ter definido os termos de uma certa forma, esbarra-se  em um impossível, há um muro que não se pode ultrapassar. Enquanto a retórica é um marshmallow, Lacan esforça-se por manter postulação à lógica – como Baudelaire falava de postulação a Deus, ao Diabo. Sem esta postulação à lógica, a psicanálise é uma compota, se podemos dizer assim. Isso não significa que se pratique verdadeiramente a lógica, nós a visamos e a aspiramos. Pois, se ficarmos reduzidos à lógica, não se pode fazer nada em psicanálise, em que tudo é metonímia, subentendido, deslocado!
Muito frequentemente, aborda-se esse texto tendo em vista a descrição, a mãe vai e vem, o pai faz isso... e acredita-se que isso é bom. Com efeito, é muito bom. Mas é necessário procurar como Lacan apresenta a sua versão, com quais argumentos ele constrói a sua demonstração. Apreende-se bem melhor dessa forma, caso contrário acaba-se por dizer coisas como: “Ah! Veja isso! Como ele observou bem! Ah! Como é bem feito!”
Um dos critérios para assimilar os argumentos mobilizados, ou não, por Lacan é acompanhar o que ele sustenta nos Escritos.Assim, o desdobramento dos três tempos do Édipo já estão considerados no que ele nomeará, em “Questões preliminares...” [p. 554],  a “retroação do Édipo”: o tempo 3 já é adquirido no tempo 1.
Em 1969, em um pequeno texto sobre a reforma universitária, Lacan escrevia a este respeito: «Le vainqueur inconnu de demain, c’est dès aujourd’hui qu’il commande. (1)» [O vencedor desconhecido de amanhã, comanda desde hoje]. Qual é a frase mais bela para indicar que há necessidades históricas? O senso comum pensa que, antes, houve o passado, que estamos no presente e que, mais tarde, há o futuro. Ora, a seita dos lacanianos pensa que o futuro já está no passado. É quase um saber esotérico no qual é necessário verdadeiramente penetrar. Isto distingue vocês de todos os outros que pensam: “Vivamente amanhã! Vivamente domingo!...”. Não há razão alguma para que os depois de amanhã cantem, ou talvez, eles já cantaram, desde hoje. É por isso que Lacan detesta a eternidade que ele evoca em O sinthomaA eternidade é bloqueada, imóvel. (…)

Lacan J., «D’une réforme dans son trou», texte écrit pour le Journal Le Monde, 1969. Cf. aussi Miller J.-A., in Lettre mensuelle, no264, janvier 2008, p. 38-39.

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