▪ LEITURA DE UMA OBRA ▪
Disponível em Lacan Cotidiano 135
«Eu não pinto o que vejo. Mas o que vi.»
Edvard Munch
« Sou um sonâmbulo andando na cumeeira de um telhado
– e estou certamente perdido nos meus pensamentos e sonhos.
Não me acorde bruscamente.
– também não precisa me arrancar deles
senão eu arrisco cair e quebrar o pescoço. »
Para nós, não se trata de aplicar a psicanálise à arte do pintor Edvard Munch. Queremos principalmente tentar cernir a função que sua arte toma para ele. O que ele quis tratar através de sua pintura? Dito de outro modo, com que real ele se deparou? Como ele trata deste com sua arte? Nós nos servimos para responder a essas questões dos textos do próprio Munch1 . O artista, de fato, escreveu numerosos textos curtos, ao longo de toda sua vida, deixando a seus herdeiros o cuidado de julgar se seriam publicáveis.
Com que real Edvard Munch se deparou ?
Ele mesmo o diz: o real da morte, através de várias mortes, que baliza sua vida desde sua mais tenra idade. Sua mãe morre de tuberculose, quando ele então tem cinco anos e uma de suas três irmãs morre da mesma doença, quando ele tem quatorze anos, acontecimento este que lhe inspirará o célebre quadro A criança doente. Ele mesmo foi uma criança doente e temeram por sua vida. A morte ronda e se imiscui na vida de Munch. Ela o segue como uma sombra, que não se deixa esquecer. Vários textos testemunham essa presença não velada da morte, que lhe faz enigma e o incita, em sua arte, a tentar « explicar a vida e o sentido da vida. Eu pensava também em ajudar os outros a compreender a vida. »
Repetir o motivo
Munch é confrontado ao enigma, na sua relação com o real. Esse real lhe deixa «uma impressão» na sua carne, no seu corpo vivo. O artista «vibra» sob o golpe da emoção sentida. Munch vai se dedicar a capturar suas «impressões» nessas telas. O trabalho deste artista nos toca pela repetição dos motivos : um mesmo quadro está declinado de múltiplas maneiras. Cada motivo é a ocasião de alcançar um momento vivido em uma nova «atmosfera». É a forma pela qual o artista tenta «reproduzir a vida», captura após captura.
A arte como cristalização
O artista está mergulhado num mundo composto de unidades de «cristal». A operação, que se realiza sobre a tela a partir das «impressões» vividas, tendo marcado, deixado sua impressão no próprio corpo do pintor, é a «cristalização». É também o nome da aparelhagem de gozo que inventa E. Munch com sua arte.
Participação do corpo vivo
O corpo do pintor – não apenas sua mão, segurando o pincel, e seu olho, aplicando formas e cores sobre o quadro – participa do processo. O artista pinta com seu corpo. Isto está atestado, por exemplo, no que ele diz do quadro que fez escândalo e que teve que ser retirado da exposição, A criança doente:
«Então eu descobri que meus próprios cílios tinham contribuído para a impressão que o quadro me dava - também eu os sugeri como sombras sobre a tela.»
Pensamos que esse quadro fez escândalo, na época, pelo fato da representação, não velada pela estética, da dor diante da morte que plana sobre a criança. É também o que faz a modernidade de Munch, o que faz dele um pintor do nosso tempo: a ausência do Belo que magnifica.
Um mundo onde «nada está morto»
O mundo, tal como Munch o constrói, é um mundo onde tudo está em movimento, tudo é vivo, mesmo a matéria inerte. A própria morte se torna portadora de vida e cada ser, por sua morte, por sua « missão », participa do grande ciclo da vida. Sua visão trans-substancialista do mundo lembra o «sonho pascaliano» da paciente de Lacan2, sonho que a levava «numa infinidade de vidas, se sucedendo umas as outras, sem fim possível» e do qual ela «acordou quase louca». De fato, como uma vida que não tivesse fim poderia ser suportável?
Um mundo de vibrações
Para Munch, os corpos comunicam entre si vibrações sonoras e luminosas. Ele conta, num mini cenário muito cinematográfico, como uma palavra – ou, antes, a vibração sonora de uma palavra – pode remeter à morte. Munch, que vive na época em que se inventa o rádio, vê nesta invenção a confirmação do que ele pressente e representa em suas telas, com suas linhas ondulantes, que são a marca deste artista, linhas que animam as formas que ele pinta.
«A linha ondulante que domina nas minhas pinturas e gravuras precedentes – é devida ao pressentimento que tinha da existência de movimentos no éter – o sentimento de ligação entre os corpos.»
Com seu célebre quadro, O grito, e o poema em prosa que o acompanha, assiste-se justamente ao paroxismo dessa «ligação» que, sob o efeito da angústia, se torna « uma contaminação»3 entre a imagem e o que vem rasgá-la: o grito.
Mas o que é o grito? Nós sabemos, graças a Lacan, que o grito fura o silêncio, o produz de alguma forma. Lacan fez referência, em várias retomadas em seu ensino, ao quadro de Munch, que ele até mesmo rebatizou: O silêncio. Para Lacan, o grito não tem lugar sobre o fundo de silêncio, é o silêncio que é causado pelo grito. « É do próprio silêncio que centra o grito que surge a presença do ser mais próximo, do ser esperado, pela razão que ele está já sempre ali, o próximo. […] O próximo é a iminência intolerável do gozo »4. O grito, ao mesmo tempo exterior e participante do mais íntimo, é oêxtimo, segundo o neologismo de Lacan. Este êxtimo é o gozo, do qual nos é possível somente nos aproximar e do qual a presença excessiva provoca angústia. É isso que testemunha esse quadro de Munch.
O artista «como um fonógrafo»
Munch pinta de memória. Ele concebe seu trabalho de artista como a restituição sobre as telas do que se imprimiu nele, como sobre uma superfície sensível. Ele faz de si mesmo, com seu corpo vivo, vibrante, o instrumento de sua arte.
«Os artistas de um país – os poetas – são fonógrafos sensíveis – eles têm o dom notável e doloroso de descobrir neles os raios – irradiados pela sociedade.»
As telas terão também, por sua vez, um caráter vibratório, o que incita o artista a constituí-las em «frisa». É assim que O grito se tornará peça que pontua uma série de cinco quadros intitulados : «A frisa da vida».
O trabalho considerável de Munch não consiste unicamente em organizar formas e cores sobre uma tela, depois, sobre outra. Ele trabalha como um verdadeiro compositor, juntando uma estruturação suplementar, que passa pela articulação de suas telas em séries. Seu aparelho pictórico encontra aí um enriquecimento suplementar.
Os textos se mostraram, verdadeiramente, uma mina preciosa para nos aproximar de sua pintura, (...). Desejamos que este curto trabalho de reflexão permita tornar mais clara sua visita, no après-coup !
Élisabeth Pontier₪
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