7.5.12

SOBRE À ESCUTA EM PSICANÁLISE...



Disponível em Lacan Cotidiano 57

     
CLOTILDE LEGUIL  
Psicanálise, Feminilidade e Política
     
Gostaria de evocar algumas reflexões sobre psicanálise, feminilidade e política que me ocorreram sobre a prisão da psicanalista Rafah Nached na Síria, e antes de começar dizer o que pensei sobre sua filha, que acaba de dar à luz, e vê esse acontecimento tão perturbador na vida de uma mulher, que é o nascimento de uma criança, associado ao rapto de sua própria mãe.

Ainda que a psicanálise refira-se ao campo do íntimo, ainda que só diga respeito àquele que nela se envolve, a ponto de não ser da conta nem de sua família, nem de seu entorno, nem de seus colegas, ela não é, entretanto, uma prática apartada da sociedade e da política. A psicanálise permite apreender em que sentido o espaço que uma sociedade reserva ao íntimo manifesta também sua capacidade de respeitar os valores democráticos. Deste modo ela tem implicações éticas tanto para o sujeito em análise quanto para a sociedade na qual é possível exercê-la.

Ora, a psicanálise no século XXI é incriminada como uma teoria e uma prática que deveria fazer sua autocrítica. Na França, em particular uma espécie de amnésia que conduz a uma negação da história, permite àqueles que desprezam a psicanálise realizar aproximações entre ela e o totalitarismo, a ponto de fazer de seu fundador um fervoroso adepto do Führer, um misógino que teria buscado desvalorizar a feminilidade, de fazer de Lacan um homem com tendências antisemitas, ou então transformar os psicanalistas em seres desviantes, desequilibrados, não merecedores da suposição de saber da qual são investidos por seus analisantes. Que a psicanálise tenha sido diretamente considerada ameaçadora por todos os regimes totalitários desde a Segunda Guerra mundial, que os nazistas tenham queimado os livros de Freud, que os psicanalistas da primeira geração tenham fugido do leste europeu durante a guerra fria, que os regimes comunistas tenham conduzido ao desaparecimento a transmissão da psicanálise nessa região da europa que, no entanto, era a terra natal da psicanálise, que as mulheres tenham podido, graças à descoberta freudiana do inconsciente, fazer passar ao logos o que só se exprimia em silêncio nos seus corpos, tudo isso não conta. Não conta mais. Foi esquecido.

Finalmente, tudo se passa como se o alcance político da psicanálise tendesse a ser revertido em seu contrário por seus inimigos. Acusam a psicanálise de reinstaurar a relação senhor-escravo, hipnotizando os sujeitos para que não tenham mais condições de pensar por si mesmos. Acusam a psicanálise de conduzir a uma concepção de ser humano que legitimaria inclusive o totalitarismo, no sentido em que os sujeitos só seriam livres ilusoriamente, mas na verdade submetidos a ideologias que os separam de sua autonomia. De certo modo, associam o inconsciente, a invenção de Freud, instaurando uma cisão entre um pensamento que se sabe e aquele que fala sem que o sujeito saiba, a um mestre maléfico que qualquer líder político poderia vir a substituir. Que qualquer ideologia racista, perigosa, bárbara, poderia substituir. De outro modo, pregam uma psicanálise sem psicanalistas, que seriam os responsáveis pelas derivas da própria psicanálise. Em resumo, seria preciso uma psicanálise depurada daqueles que a amam e a praticam, para emancipá-la daqueles que lhe conferem uma eficiência no real. A raiva se endereça aos psicanalistas como sujeitos apaixonados demais por seu próprio engajamento, cuja paixão seria causa da cegueira relativa à natureza da própria psicanálise, sujeitos em relação aos quais seriam preferíveis aqueles capazes de falar sem amar, de falar da psicanálise sem nenhum afeto, para fazer advir a verdade objetiva sobre ela, entretanto sobre um fundo de raiva dirigida a ela.

Ora, isto que se constata no sortilégio lançado à psicanalista Rafah Nached em seu país, a Síria, tragicamente mostra em que sentido a psicanálise é portadora de consequências éticas e políticas, que dizem respeito tanto à feminilidade quanto à liberdade, ao respeito ao sofrimento do outro assim como ao desejo de saber. A psicanálise, lembrava Lacan desde 1953, só tem um meio: a fala. E efetivamente, todo o universo psicanalítico, todos os efeitos de uma análise, gravitam em torno da função da fala e do campo da linguagem. A fala é portadora de um valor que confere ao sujeito que fala a possibilidade de se desfazer, de se desassujeitar do que vem aliená-lo em sua existência. A psicanálise aparece, então, sempre, como um enclave no seio da sociedade, um lugar em que o Outro social não nos vigia mais, em que não estamos mais sob o jugo da injunção avaliativa, em que podemos dizer o que nunca dissemos alhures. Mas ao mesmo tempo ela tem de se haver com o animal falante no ser humano, aquele que Aristóteles chamava de zoon politikon, e conduz, por meio da fala, a atribuir um valor particular ao que um sujeito pode dizer, como mulher e como homem. Se há, portanto, uma antinomia entre psicanálise e totalitarismo, é também porque há uma profunda afinidade entre psicanálise e libertade, liberdade de fala e de pensamento dos sujeitos em busca do que desejam.

Falar de efeitos sobre o sujeito, assim como de que esses efeitos lhe escapam, e que é nisto que eles operam, pois escapam ao controle e à vigilância em geral. Portanto, não se trata apenas de que falar alivia, senão a psicanálise não  passaria de uma psicoterapia, estepe que permite suportar o insuportável. É que falar em certas condições e ser escutado de um modo bastante particular, conduz a liberar a própria fala do que a encadeia e a produzir uma outra fala, que não é mais submetida do mesmo jeito às injunções do Supereu da civilização. E eu direi que é nisto que uma sociedade manifesta de certo modo sua força democrática, nesta capacidade de suportar que haja também entre os cidadãos, homens e mulheres, algo que escapa ao controle social, algo que escapa à fiscalização pela técnica, uma forma de loucura que pode se transformar em logos com a condição de que a escutem.
     
É na medida de sua capacidade de perder uma parte do controle sobre os sujeitos, a renunciar a ele, que uma sociedade demonstra força democrática e de justiça. Ela mostra que respeita nisto o que faz de um sujeito um ser livre que se atribuiu leis para não se entregar a um mestre; um ser livre que poderá ao mesmo tempo contribuir com o edifício social a partir de um pensamento singular. Como pôde dizer Hannah Arendt, pioneira que escolheu consagrar-se ao pensamento filosófico e à denúncia da sociedade totalitária através de suas engrenagens, “pelo simples fato de que são capazes de pensar, os seres humanos são por definição suspeitos”. Ora, a psicanálise contribuiu para fazer reconhecer o valor da fala e do pensamento das mulheres para além de seus sintomas próprios. Mas desde que as mulheres são consideradas como seres capazes de pensamento, são também consideradas suspeitas e ameaçadoras por aqueles que não querem cidadãos que pensem, mas simplesmente escravos que obedecem. Uma sociedade democrática é, então, uma sociedade capaz de renunciar a essa suspeita com relação ao pensamento dos outros, isto é, uma sociedade na qual a fala é respeitada como meio que pode transformar um ser ao conduzi-lo a pensar no que ele próprio não sabia. É com essa única condição de que algo novo pode advir no seio de uma civilização que aceite não fechar os olhos para o mal-estar que lhe é inerente.


Fouzia Liget e Judith Miller publicaram em LA REGLE DU JEU:   
http://laregledujeu.org/2011/10/13/7335/il-n’y-a-pas-d’incompatibilite-entre-psychanalyse­et-islam/        
http://laregledujeu.org/2011/10/12/7337/rafah-survivre­nest­pas­vivre/           


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