8.5.12

SOBRE À ESCUTA EM PSICANÁLISE...


Disponível em Lacan Cotidiano 114
(De Wolney Fernandes: Caos Espiral)
Todos alienados à ciência ¹
Por Dominique Miller
N
enhuma posição reacionária contra a ciência tem justificação. Todo mundo está de acordo para dizer que o discurso da ciência é sinônimo de progresso e de evolução humana. E, entretanto a questão de impor ou não limites éticos a ciência está cada vez mais urgente, e de seus efeitos eventuais sobre esta evolução. Numerosos comitês de ética se formam e se dissolvem para tentar travar os efeitos imprevisíveis, até destruidores do discurso da ciência. Se a psicanálise é fundada em intervir neste debate, não é em nome de nenhuma legitimidade em matéria de moral, mas em nome de um saber adquirido por sua prática sobre a lógica dos homens em relação a seu desejo. E é bem o desejo que está em jogo para esses seres tomados num discurso tão produtivo como o da ciência.
Partamos da idéia essencial da psicanálise que é a dependência do homem da linguagem e dos efeitos discordantes desta dependência. Os homens tiveram que passar por essa  mídia para satisfazer seus apetites, elaborar seus projetos, produzir suas pesquisas, formular seus desejos. Esta dependência da linguagem deu nascimento a todo tipo de campos de saber. Entre eles, o mais recente, o mais ativo, o mais variado, o mais surpreendente, o mais fecundo e o mais criativo, nosso discurso da ciência. E eu diria que, no conjunto dos discursos, ele faz figura de exceção fenomenal, de monstro. Um monstro, porque é o mais abstrato de todos os discursos, e, entretanto se impõe progressivamente para agir sobre todos os domínios engendrados pelo homem e a natureza. Ele é único para o qual cada significante não está associado a nenhum significado. E são as ciências físicas e as aplicações tecnológicas, que ele gera, que dão seu sentido às pequenas letras matemáticas.  Sua abordagem é inigualável ao ponto de revolucionar o desenvolvimento humano de uma maneira radical e definitiva. Devemos a ele a Revolução industrial e a Revolução da informática que mudaram as relações dos seres no mundo e dos seres entre si. 
Com esse paradoxo, de reforçar a dependência do homem a esse discurso. Quando a ciência permitiu à humanidade franquear como jamais os imperativos de seu ambiente, de seu corpo e de seus obscurantismos religiosos e ideológicos, o homem moderno escravizou-se sempre mais à ciência. Podemos só constatar uma implicação dos discursos científicos sempre maior e cada vez mais indispensável em todos os domínios, militar, médico, ambiental, agricultura, aeronáutico, comunicação, transportes, mas também econômico, político, judiciário, policial, psicológico, etc. Eu esqueço.
É nesta dependência ao discurso científico que reside uma forma de engrenagem onde a evolução chama um recurso à ciência, e onde esse recurso arrisca de se tornar uma ameaça. Temos de lidar com um interesse incoercível. A que se deve esta dependência? De uma parte, é a uma forma de injunção que esse discurso e seus cientistas estão submetidos. Eles devem descobrirO homem encontrou na ciência um novo mestre porque ela tem esse poder de libertá-lo de seu Real. O discurso da ciência fez parecer que o simbólico não era mais que semblante. Os outros campos do saber como, por exemplo, a história, a religião, o discurso político, a filosofia ou a literatura apareciam como ficções ao lado do caráter real que revestem as descobertas científicas. Enquanto o Real é por definição o que não se conhece, o não-sabido, a ciência faz valer que há um saber no real. Sobre a imensidade planetária ou o ínfimo do átomo, os matemas têm alguma coisa a dizer. Ou antes a escrever. Desde então, não se cessa de ganhar terreno sobre esse Real para vencer, pensamos, nossa ignorância. É preciso eliminar o real, o insabido.
Por outro lado, eles devem inventar. Sempre fazer o novo. A descoberta vale sempre mais que o reencontro. O desenvolvimento do discurso da ciência submete o homem ao imperativo do mais, do melhor, até mesmo do absoluto. É assim que progressivamente, ele não está somente a serviço do desenvolvimento mas da felicidade: salvar o ambiente, suprimir a esterilidade, aparecer uma aritmética para aumentar os lucros financeiros, impedir a anormalidade genética, etc. A ciência deve apagar toda falha da natureza e do ambiente, e aumentar o potencial das satisfações humanas. Ela se produz aqui, a coincidência entre modernidade e ciência. Esta engendrou a modernidade que defende como solução da vida a exigência da satisfação, com o que esta exigência supõe: imediatismo, eficácia, vigor, domínio, diversidade, originalidade, perenidade. O contemporâneo adotou o princípio do extremo no prazer, da procura da sensação suprema, da promoção do excesso ao ponto de fazer nascer as modalidades de vida impossíveis sem um discurso apropriado para lhes satisfazer. É a essência mesma do discurso da ciência que é própria para satisfazer esta espiral moderna. Ao ponto de que a questão que nos colocamos é a de saber se é a ciência que está a serviço da modernidade, ou a modernidade que se coloca a serviço da ciência.
Assim, qual é a propriedade desse discurso que lhe dá esta abordagem criativa e incalculável? É que esse discurso se autoengendra. O discurso se alimenta dele mesmo permanentemente, se reproduz para produzir sempre mais avanços. O exemplo mais radical, é claro, é o das matemáticas puras que é a base de todas as ciências. Esta língua joga sozinha com suas pequenas letras que funcionam segundo o princípio da lingüística, metonímico e metafórico. Metonímico de início: um número, uma equação, uma solução chamam sempre um outro número, uma outra equação, uma nova solução; e isto ao infinito. Metafórico em seguida: é preciso produzir o sentido, uma resposta matemática que deverá chegar a uma invenção científica e enfim dar nascimento a uma aplicação técnica.
Esse discurso comporta em si um tal imperativo que os matemáticos chegaram a estabelecer repertórios e classificações de questões sem resposta, mas também a organizar uma classe de exceções. Assim, os cientistas não são somente obrigados pelo formalismo matemático, mas se acham presos numa camisa de força que deve fazer do impasse mesmo um conteúdo científico. É assim que existem ramos matemáticos dormentes, deixados de lado, sem soltá-los nem os considerar como mortos. Eles poderão servir um dia, e sustentar um novo ramo ainda não conectado, ainda não nascido. Sabe-se também a que ponto as pesquisas científicas e suas publicações são submetidas ao que um amigo chama « a mecânica infernal da bibliometria ». O valor do cientista se mede pelo número de suas publicações e das referências que elas ocasionam no mundo científico internacional. 
Assim, eu diria, em psicanálise, que a estrutura do discurso científico comporta uma forma de auto reprodução que faz dele um discurso que goza de si mesmo e entretém um princípio de empuxo-a-gozar por si mesmo. O discurso científico é um discurso pulsional. Há no discurso da ciência uma força libidinal que empurra a alimentar sempre mais. Ela é aqui a razão principal da alienação do homem moderno a esse discurso.
E evidentemente do cientista em primeiro lugar. Também é colocada a questão da relação que o cientista mantém com o discurso no qual se banha. Pergunta evidentemente subjacente a colocada pela ética. O que ele domina desta natureza aditiva de sua língua matemática, física, biológica, química, etc.? O cientista não é nada além do instrumento,  secretário, desse discurso? Entretanto, é patente que cada cientista tem seu estilo de escritura. Grafos, algoritmos, diagramas, figuras, com lápis preto ou colorido, cada um coloca aí sua singularidade, ainda que forçado pelo formalismo dessa linguagem. Parece que se exerce para cada cientista uma tensão entre a força libidinal de sua língua e sua própria satisfação a escrever (mais que a falar).
A força libidinal do discurso da ciência pode dar a pensar que não há aqui, em ação, um sujeito do desejo no sentido da psicanálise. Poderíamos ir até acreditar que um dia robôs virão substituir os cientistas e farão seus cálculos. Muitas ficções futuristas colocaram essa questão, tomando nota deste tipo de autonomia gozante do discurso da ciência. Essas questões são frequentemente nulas e não trazidas pelos cientistas eles mesmos. Como se fosse um luxo que eles não poderiam se permitir. É que, justamente, o exercício desse discurso supõe estar dentro desse banho de linguagem e de encontrar a solução sem jamais se incluir aí como sujeito. Não há lugar para seu desejo de sujeito com um inconsciente singular na mecânica desse discurso. Muitos pesquisadores ignoram quais resultados suas soluções encontrarão no seio de sua matéria, nem quais aplicações elas terão. Mais ainda, eles não têm o desejo de sabê-lo. Eles têm a necessidade desta « paixão da ignorância » sobre seu próprio desejo para ser cientista. É possível divisar um pesquisador que, avançando em suas equações, se interrogaria sobre estas, sobre a validade delas, sobre seu uso? Uma posição onde ao mesmo tempo, ele se incluiria como pesquisador, se excluindo totalmente como causa subjetiva de sua pesquisa. Imagina-se a divisão na qual ele se encontraria e a inibição que resultaria disso. Isso calculaÉ assim que Jacques Lacan pode dizer que há uma « foraclusão do sujeito » no discurso da ciência. É um discurso que não se subjetiva.
Então esta vontade de poder, digamos de gozo, tende em direção a uma perspectiva que coloca uma condição incontornável: eliminar o Real, suprimir toda falha, todo enigma. É o que se espera do progresso e da dominação do Real que este exige. A psicanálise pode testemunhar sobre o impossível da eliminação do Real. A conseqüência deste impossível sendo justamente o mecanismo de repetição do recurso aos matemas, ao infinito. O que é produtivo, mas que comporta um risco com o qual nos ocupamos hoje. Neste gozo do discurso se aloja uma pulsão de morte, quando se trata de ignorar a impossibilidade estrutural de vencer o Real.  Comenta-se cada vez mais as conseqüências destrutivas inerentes ao desenvolvimento do discurso cientifico: além da bomba H, os efeitos sobre o ambiente, o aumento do desemprego, a desregulação das finanças, o isolamento dos seres e suas adições, o medo da clonagem, etc. 
Mas é possível que a ciência integre a idéia mesma de que seu poder seja também sem limite, até mesmo seu impasse? Isso não é somente assunto dos cientistas, é dos políticos e dos cidadãos. 
Dominique Miller pronunciou esse discurso na ocasião do Colóquio Unesco, Humano e Pós-humano: os limites éticos da ciência são obstáculos à evolução? Que aconteceu nos dias 14 e 15 de novembro último. 

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