11.5.12

SOBRE À ESCUTA EM PSICANÁLISE...


Planeta Justine por Eric Berenguer
Disponível em Lacan Cotidiano 87 


Melancolia, Lars von Trier, Hitler, uma mulher andaluz

O gênio de Lars von Trier escolheu o cenário de um casamento para fazer evoluir a personagem que encarna a idéia que ele faz da melancolia. É preciso dizer que foi uma escolha muito oportuna. O banquete de casamento é, com efeito, um lugar onde o jogo de semblantes que rodeiam esta celebração da relação sexual supostamente existente, ao menos durante algumas horas, mobiliza-se com toda sua potência de produção para acreditar numa felicidade, não apenas possível, mas dir-se-iarealizada. É ai justamente onde a falofonia é esperada, em particular, na figura da mulher que acaba de se casar, exibida e seu corpo oferecido a todos os olhares, neste dia sem pudor, pois dir-se-ia que tudo, durante algumas horas, faz vínculo, não apenas entre anoiva e o noivo (la bride et le groom), mas também entre todos os convivas que participam, da alegria contagiante, da solenidade dos brindes, da generosidade calculada do baile.
Mas, no momento em que a felicidade do casamento era o mais esperado por todos, o planeta Justine irrompe para mostrar a futilidade de todo vínculo, a inutilidade da beleza tanto quanto a da bondade, o vazio dos discursos que todos estão prestes a pronunciar, o ridículo das palavras das quais o amor se serve para se dizer.Logo, para destruir todos os semblantes com a arma mortal de um gozo sem limites e cuja opacidade marca o lugar neste pequeno mundo.
Com uma mestria completa da cena, von Trier nos mostra como o brilho fálico, que no início preenchia tudo, refletindo-se sobre cada um e sobre cada objeto do menu, seca-se rapidamente e fica sem remédio, quando aquela que devia ocupar o centro deste universo de aparências recusa-se a ficar neste lugar e opõe à avidez dos olhares, seja uma esquiva enlouquecida, seja uma presença completamente, opaca, de pedra.
Próximo do início de algo que se parece com angústia, mas que muito rápido revela um buraco aberto muito mais profundo, esta presença toma em seguida uma outra forma cuja brutalidade faz pensar nos ecos sadianos de seu nome Justine, mesmo que no caso, não se trate de virtude, nem de uma vítima do vício. Muito rapidamente descobre-se que há nela, além de qualquer justificação, uma satisfação mortal à qual esta mulher se entrega e que, por momentos, revela-se em toda sua obscenidade, sua crueldade desencadeada.
Do objeto de que se trata, dele é dito alguma coisa nesta oscilação marcada entre, de um lado, o olhar ausente de Justine sob os olhos dos outros (com seus próprios olhos meio fechados que parecem encerrar sua luz quase apagada, mas com clarões que sem dúvida jorram de um fogo frio que a habita), e, por outro lado, a explosão deste momento triunfal, no qual ela se oferece nua a este olho imenso que é o planeta que se aproxima, e que ela é a única capaz de olhar de frente, caídos todos os véus, abandonada ela mesma a uma jubilação fascinada. É talvez a promessa de extinção próxima presente neste astro assassino que inclina o céu diante de Justine, o que elimina alguma coisa nesse corpo cheio de sua própria substância, com aconsequência falsamente parodoxal, que ela pode reconhecer que goza, que se rejubila, ela é capaz enfim de sentir, no instante mesmo de sua aliança sem retorno com uma morte universal. Isto tudo vai acabar, ela o sabe, e ela o diz, com esta coisa maligna que é a vida na terra, uma anomalia, a única num Universo eternamente vazio. O dizer de Justine que fala, como o escreve Lacan em “Subversão do Sujeito”, no lugar “de onde se vocifera, que o Universo é uma falta na pureza do não-ser”, lugar do gozo ele mesmo.
Do lado oposto desta destruição de todo vínculo possível por Justine, sua irmã Claire foi concebida para encarar o esforço incessante para fazer vínculo, para carregar, através do amor, a suposição de um Outro, mesmo quando sua desaparição para sempre está comprovada. E o sutil observador que é Von Trier tem sucesso em mostrar brilhantemente a oposição radical entre o que Justine presentifica e a angústia de Claire como um afeto profundamente ligado, nos momentos mais extremos, ao Grande Outro, o que é, sem dúvida, uma das faces mais obstinadas do que reconhecemos como humano: o vínculo que existe quando parece nada mais restar.
Justine me faz lembrar uma mulher que encontrei na Andaluzia, quando da apresentação de pacientes. Em determinado momento, sabendo que ninguém mais iria ouvi-la, ela me fez esta terrível confissão, do que a tem motivado na longa série de atos suicidas de sua parte, contra as quais a psiquiatria parece lutar com meios que parecem fúteis, face à sua determinação em destruir-se. Ela me diz: “Eu quero morrer porque eu não amo ninguém”.
Este “eu não amo ninguém” é a certeza que se impôs a ela quando, antes de seus dezoito anos, ela viu ser levada a criança que ela acabara de dar à luz, de uma relação com um amigo da mesma idade. Criança que ela teve, finalmente, sem que seu pai tivesse outra coisa a dizer, além de garantir que ia ser bem recebida pela família, sem remorsos, sem reprovação; istosobre o fundo do silêncio da mãe, sobre a qual esta mulher nada tem a dizer, salvo seu próprio silêncio gritante.É, portanto, neste momento preciso, quando ela devia tomar esta criança em seus braços, que ela, bem amada por seu pai assim como pelo “bom rapaz” que a deixara grávida, sente-se incapaz de amar esse fruto saído de seu ventre. O que a faz afundar imediatamente numa negação decidida de toda a vida, notadamente a sua.
Esta mulher Andaluz, de olhar tão apagado quanto o de Justine, tem também uma espécie de planeta morto e mortal onde ela habita. Depois de tantos anos (mais de vinte) vivendo nesta recusa de tudo o que é vivo, e, sobretudo, de tudo o que a pode lembrar o amor dos outros e que lhe provoca uma dor indescritível – a ponto de recusar-se sempre a receber seu filho que vai vê-la no hospital -, ela acaba por pensar que, no fundo está morta, é um zumbi, cuja ausência de vida se tornou uma potência ativa, epidérmica, tendo por consequência que, no fim de algum tempo, todos os espaços que ela frequenta estão povoados por seres tão mortos quanto ela mesma, seres nos quais toda vida desapareceu em contato com a força mortífera que reside em seu corpo. Talvez seja porque ela acredita por um momento, que eu ainda não esteja morto, que ela me testemunha o que não quis dizer a ninguém.
Zumbi ou não, é o vazio absoluto da forclusão – que tem engolido todo o sentimento de vida nesta mulher – que se sente com força ao aproximar-se, ao falar-lhe, ao ouvi-la. Nela, como em Justine, produz-se esta espécie de transusbstanciação, que faz com que o vazio da forclusão torne-se o pleno infinito de um objeto não extraído, o qual preenche tudo sem remédio, como esta “plumagem cinza” (laine grise) que a personagem de Von Trier diz ter a impressão de atravessar, quando tenta combater a inércia de seu corpo para se deslocar.
Talvez esteja aqui o planeta mortal: o circulo do zero, índice que Lacan pôs aos pés do Phi, para designar as consequências sobre o ímpeto vital deste mesmo zero da forclusão que perfura a base do P no lugar do Nome do Pai. Círculo vazio que, por um efeito de retorno do real, torna-se este objeto esmagador, sem limites, porque não extraído da cena do mundo, tanto quanto do corpo do falasser (parlêtre). Lógica implacável que Jacques-Alain Miller, há algum tempo nos tem ajudado a extrair do ensino de Lacan, para nos permitir aí ver num relâmpago, o funcionamento frequentemente invisível porque muito presente, do objeto na psicose.
Portanto é um buraco bem perigoso, em si mesmo e para tudo o que disso nele faz retorno. O que nos faz pensar nas bobagens proferidas por Von Trier a respeito de Hitler, durante entrevista em Cannes. O gênio do artista, sempre bem vindo, não basta de modo algum, quando se aproxima desta zona sensível. É preciso prestar atenção, com efeito: o mínimo que poderia acontecer, é que ele estivesse brincando. Ou pior.
E. B. Barcelona.

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