-Elogio à singularidade -
Por Mauricio Beltrán
Disponível em Lacan Cotidiano 187
Q
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uando me perguntaram se eu podia dar conta, a partir de um caso, da eficácia da psicanálise na melhora do sofrimento subjetivo de uma criança dita «autista», eu me apressei em responder: «evidentemente». No mesmo momento eu coloquei uma nuance em minha resposta, por um tipo de pudor que tempera essa segurança, retomando a mim mesmo: «pelo menos para mim».
T'al foi a minha questão: Isto é suficiente? Será suficiente que na minha prática psicanalítica com crianças ditas autistas, eu observe modificações substanciais em seu posicionamento frente ao Outro do laço social e face aos objetos com os quais «nós» esperamos que eles estabeleçam uma ligação? Isso é suficiente para mim? Isto é suficiente para eles?
Que uma criança de três anos se apresente com uma série de manifestações orientadas à recusa de uma troca mínima, que ele bata com sua cabeça e com os pés no chão do consultório, frente a uma aproximação fortuita ou intencional, e que três anos mais tarde tenha com um analista uma troca franca de objetos, e siga uma escolarização ordenada e amigável e guarde as palavras dos pares ocasionais, que ele não percebia até o presente e que ele oriente sua conduta e suas intenções, tudo isso, poderia parecer insuficiente.
Tudo isso mostra na verdade o problema da realidade exterior. Freud em um certo momento, opõem a realidade exterior à realidade psíquica.
Nesta perspectiva, eu poderei afirmar de novo, segundo a minha segurança inicial, que a realidade psíquica desta criança que tem perto de seis anos, se organizou progressivamente, baseando-se em uma série de coordenadas que lhe permitem melhor se virar com as urgências do social: pequenas bordas, sinais, balizas, permitindo, por exemplo, fazer transbordar um copo de água e diversas vezes, quando ele se sente transbordado.
Ele respondia assim a uma questão das professoras da escola que eu assistia, preocupadas com o fato que «ele não suportava» lanchar com os seus coleguinhas de classe: ele chorava, se batia, se isolava. Agora ele lancha com os outros: de tanto vazar mais e mais seu copo de leite em um outro copo, para, finalmente, bebê-lo em pequenos goles.
Mas se a realidade externa - na pessoa do neurologista infantil - não está de acordo com as concessões que a criança concede ao Outro da demanda do laço social, e que o considera como bizarra ou não adaptada e que lhe indica, assim como estipula sua receita médica do mês de março passado, um tratamento cognitivo-comportamental, o que sobra desta construção singular que serve a ela para fazer frente ao problema?
Há três anos, «as perspectivas de laço» desta criança não eram assim tão «razoáveis» como atualmente, ele gerava um mal-estar devido à maneira que ele se colocava às quedas dos corpos, escalando os móveis ou saltando nas cadeiras. As intervenções visavam a evitar essas condutas de risco despertando nele violentas reações. Dificuldade dele de alcançar pela via do simbólico, ele infligia a si mesmo, batendo no rosto ou batendo com a sua cabeça no chão. O corpo a corpo era praticamente a única maneira de se aproximar dele. Eu pude participar disso por uma posição de espera que fazia de mim um móvel a mais a escalar.
A continuidade no espaço que não admitia nem paradas nem cortes frente ao perigo, foi revista por uma iniciativa de intervenção que tomei: contar até três e depois lançá-lo sobre o divã de meu consultório. A partir daí, a criança buscou a repetir esta ação de novo e de novo.
Os balbucios começaram então a escandir o vai-e-vem do corpo. Curtos e prolongados, eles acompanhavam seus movimentos e delimitavam uma experiência de satisfação onde se configurará uma inscrição.
Sobre este dispositivo de corpo a corpo, um objeto se constrói: algumas pequenas pecinhas que ele busca e segura com força, antes de ser lançado sobre o divã.
A palavra pode então fazer ancoragem no objeto e dar lugar a uma primeira interpretação: «tu não és mais um objeto a ser lançado».
Esta interpretação, associada ao lançar das pecinhas sobre o divã, suscita a surpresa manifesta na criança. A partir deste momento, ele começa juntá-las para de novo as dar ao analista e repetir a ação.
O objeto lançado será aquele que em seguida começará a trocar, inaugurando uma série metonímica que vai das pecinhas aos papéis de cor e desses às almofadas. Sempre a serem lançados sob seu olhar vigilante e seu gesto de alegria. Esta criança se extrai do circuito real do corpo e pode vir se alojar no lugar de onde ele olha a série das etapas que antecipa o fim esperado. Uma vez mais, a intervenção analítica acha uma correlação na sua maneira de se ‘virar’ na classe da escola. As professoras o observam e o acham «mais atento», capaz de sustentar as atividades sem vaguear como antes.
Este pequeno pedaço de sentido que comporta a marca de um gozo, permite inscrever segundo uma metonímia própria de cada um, o caminho do desejo... Nesta perspectiva, a psicanálise, como prática, se revela adequada ao tratamento do «um por um» que requer uma inventividade para dar borda ao real a partir de um imperativo apressado e que leva hoje um nome (equívoco): adaptação.
Tradução espanhol/francês: Sophie Caussil
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