10.4.13

A propósito das simultâneas do Pipol 6


A instituição, a singularidade e o vazio
Lacan Cotidiano 303

Em nossa época de Após o Édipo, na qual o simbólico se torna cada vez mais incapaz de fazer um lugar para o real, tudo isto que trata do inesperado, do incalculável e do imprevisível, é temido. Este mundo contemporâneo - onde o mercado propõe um universo onírico, onde a ciência procura medir e controlar o real  até o ponto de fazê-lo desaparecer – este mundo encontra eco no refrão da música da famosa banda de rock britânica Radiohead: "Sem alarmes e sem surpresas”. (NO SURPRISES - Radiohead (letra e vídeo) letras.mus.br/radiohead/63014/ Assim, interrogaremos Pipol 6 sobre o fato de saber como conceber uma apresentação clínica que possa transmitir um real rejeitado por nossa civilização.
Além disso, como valorizar a singularidade do sujeito prejudicado pelos discursos normativos? A questão surge porque acreditamos que a existência deste real contingente que orienta a psicanálise lacanianadepende não somente da clínica mas também de sua transmissão. Uma obra do artista contemporâneo Pablo Reinoso nos permite pensar essa problemática.



O quadro da instituição
"Quadro" é o título que o artista escolheu para a peça que representa uma moldura tradicional em madeira, mas na qual as varas que constituem um dos quatro ângulos se emancipam da forma instituída, se inter-tecendo, enovelando-se de uma maneira singular. Reinoso faz com a madeira o que Gaudí fazia com a pedra.
Este ângulo - que, apesar de sua originalidade não excede os limites do retângulo estabelecido pela borda externa do quadro - chama a atenção do espectador convidado a reconhecer num objeto comum, já visto, um detalhe que faz nascer algo novo. Em outras palavras, no que é instituído, no que sabemos, no que podemos antecipar da forma tradicional que permite identificar um objeto, o artista apresenta o inesperado que faz irrupção e surpreende.
Nas simultâneas do Pipol 6, tratar-se-á de incluir na construção do caso a dimensão institucional. Como compreender isso? A noção de instituição pode ser captada no sentido clássico de lugares como a escola, o hospital, o centro de saúde mental e até mesmo o divã[i], mas também no sentido do que é rotina, regularidade, costumes e regulamentos. No entanto, o que faz esta regularidade para o sujeito, é este quadro, esta tabela de leitura, que Lacan chama de "janela do fantasma". Portanto, esta obra de arte evoca, em primeiro lugar, a dimensão institucional no que o quadro tem de tradicional.

A singularidade
Mas, como dizíamos acima, esta obra tem a particularidade de apresentar em um de seus ângulos uma série de nós que introduzem, na forma clássica, uma singularidade que tem a ver com o que é mais íntimo do sujeito. Assim, o artista destaca uma novidade, criando uma tensão entre duas ordens: o estabelecido e o inédito. Os nós surpreendem porque fazem parte de uma forma conhecida e, ao mesmo tempo, nela transbordam. Este objeto permite apreciar como estas duas dimensões, o estabelecido e a novidade, coexistem sem excluir, e ilustra a forma como o quadro, e o que ele representa da estrutura, é necessário para que a invenção própria do sujeito possa  emergir como uma surpresa[ii].
Além disso, a originalidade deste quadro que tem a propriedade de vincular a estrutura e os nós, parece-nos uma metáfora feliz da maneira como o primeiro e o último ensino de Lacan podem se articular na experiência da psicanálise.
Nesta direção, acreditamos que o Após o Édipo não implica em sair da noção de estrutura, mas em insistir no um por um, situando em cada caso clínico o que é da ordem do real, do simbólico e do imaginário. A direção do tratamento, em nossa época, então, depende cada vez menos da referência estrutural.

O vazio
No entanto, como Jacques-Alain Miller pôde dizer em Comandatuba, o único princípio que rege a prática lacaniana é o "isso falha". Quando entendemos como uma interpretação operou, não se trata de uma interpretação analítica[iii]. Se a surpresa é uma falha no estabelecido, um erro no padrão, poderíamos dizer que o "isso surpreende" é uma variação possível do "isso falha".
Assim, o "quadro" de Reinoso não é um quadro a mais, da mesma forma que a roda da bicicleta de Duchamp, elevada ao status de objeto de arte, não é qualquer roda[iv] . Ele não tem a função de todos os outros quadros, aquela de contornar uma representação. Ele permite, ao contrário, identificar a imensidão do fundo, isolando um pedaço da parede. Ele faz existir um vazio de representação ali onde não havia nada. O artista nos surpreende ainda uma segunda vez, convidando-nos - como Lacan no Seminário 19 [v]– a olhar o que passa geralmente despercebido: a própria parede. Esta modalidade da surpresa não é, parece-nos, da mesma ordem que aquela produzida pelos nós porque ela não se deduz das leis impostas pelo quadro, ela não tem qualquer relação com o que a delimita.
Assim, aplicando esta obra ao tema das simultâneas, nós poderíamos dizer que é graças a este quadro da construção do caso, incluindo o instituído e a invenção singular que o que não pode ser dito é cernido e se torna, a partir desse momento, suscetível de ser transmitido. Gil Caroz[vi] com Bruno De Halleux o explicaram assim: “O que me surpreende a cada vez é um sentimento de não ter sabido dizer o essencial”.
Como se no coração do que relatamos de nossa clínica, de nossas pesquisas, de nossos avanços, se alojasse um indizível, uma coisinha pequena qualquer que vale tanto quanto um núcleo invisível, uma causa intransmissível, condição para que esta clínica possa se desenvolver. O esforço de construir um quadro na escrita de um caso visa, então, a fazer surgir um vazio de representação cernindo/identificando um real que é menos narração de uma história que série de fragmentos isolados por uma lógica. A aposta é alta porque se "o futuro da psicanálise depende do que surgirá deste real"[vii], a existência desse real, em parte, depende do discurso analítico.
No Pipol 6, que se inscreve nos desenvolvimentos de Jacques-Alain Miller sobre O Um-todo-só – L´Un-tout-seul -, esperamos poder apreender alguma coisa da ordem da falha, ali onde houve uma surpresa no instituído. E fazendo emergir o que escapa ao norma-mâle – norma-macho - que o que não pode ser dito nem representado, seja o feminino, este "núcleo invisível" pode se identificar e se transmitir. Porque para que o feminino encontre um lugar no futuro, aqueles que se orientam pela psicanálise lacaniana têm um papel a desempenhar na civilização. Ao colocar de si,  estando ali e fazendo parte de uma comunidade analítica porque não há transmissão sem corpo e sem outros[viii].
Laura Petrosino
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i Bassols, M., « Présence de l’institution dans la clinique », PIPOL NEWS 4 :
ii Nous nous inspirons des développements de Jacques-Alain Miller dans son article « Introduction à     l’érotique du temps », La cause freudienne n°56, Paris, Navarin, pp. 63-85.
iiiMiller, J.-A., “Une fantaisie”, Mental, n° 15, 2005, pp 9-27.
ivNous nous inspirons du travail de Gérard Wacjman dans L’objet du siècle, Paris, Verdier, 1998.
v Lacan, J., « …ou pire », Séminaire livre XIX, Texte établi par Jacques-Alain Miller, Seuil, Paris, 2011.
vi Caroz, G., “Le cas, l’institution et mon expérience de la psychanalyse », Pipol News n°2 :
vii Lacan, J., “La troisième”, La Cause freudienne n° 79, Navarin, p. 32.
viii cfTroianovski, L., “Para que algo resuene hace falta el cuerpo. La transmisión en psicoanálisis”. À apparaître dans Pipol News.
ix Novarina V., Devant la parole, Paris, Éditions P.O.L., 1999, p. 16, cité par Philippe Lacadée, in Vie éprise de parole, Paris, Éditions Michèle, 2012, p. 13.
x Lacan J., Le Séminaire, livre XXIII, Le sinthome, Paris, Seuil, p. 31.
xi Lacadée Ph., op. cit., p. 146.
xii Ibid., p. 148.
xiii Ibid.
xiv Ibid., p. 188.
xv Ibid., p. 156.
xvi Cf. Miller J.-A., « Clinique ironique », La Cause freudienne n°23, février 1993.
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Chamada de contribuições para as simultâneas do Pipol 6:
Informações em Pipol News 27

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