24.5.13

Falar com qual corpo?




Patricio Alvarez 
Director VI ENAPOL 

Em Lacan temos, no mínimo, três teorias sobre o corpo. Com elas se elabora uma clínica que vai se tornando complexa.

As normas do Ideal do eu constroem o corpo especular. Na base está a norma principal que a regula: o Nome-do-Pai. Lacan constrói sua clínica das estruturas a partir dessa relação entre simbólico e imaginário. Mas, dessa clínica estrutural se pode depreender também uma clínica do corpo: assim, o corpo fragmentado esquizofrênico se opõe à multiplicação das imagens do semelhante na paranoia, onde Schreber percebia as quarenta ou sessenta almas de Flechsig. A dissolução imaginária da histeria, na qual um corpo tem a mobilidade das metáforas e metonímias, opõe-se à fortificação egóica do obsessivo, que infla seu narcisismo e faz com que o semelhante se perca em seus labirintos.

Essa é, também, uma clínica onde a norma fálica organiza o corpo. Nela a fobia arma o mapa do corpo ameaçado pela castração e se opõe à perversão, na qual o corpo que se traveste ou agrega ao outro a decoração de um sapatinho são modos de produzir o falo imaginário e, assim, desmentir a ameaça.

Uma vez construído o grande edifício das estruturas clínicas, o real entra em cena, agitando a harmonia das normas simbólico-imaginárias, e o grande edifício é habitado pelo objeto a.

Este segundo corpo não é tão simples. Consiste em um corpo topológico, no qual há um furo central provido de uma borda, a zona erógena freudiana, e ao redor dessa borda constrói-se a superfície do corpo, na qual acontecerá a identificação especular. A isto se acrescenta outra operação simbólica, a castração, que simboliza o furo como falta e dá unidade ao corpo.

Com o objeto a se constrói uma segunda clínica do corpo, mais sutil: pequenos detalhes marcam o erotismo dos corpos, orientam a eleição amorosa, determinam as paixões. A neurose coloca em jogo a relação entre corpo e angústia. A psicose demonstra a relação entre objeto e imagem e, assim, o paranoico espancará no semelhante o kakon, esse mal que localiza no Outro. O autista, que não dispõe do furo real, terá a maior dificuldade para construir uma borda e, com ela, um corpo. O esquizofrênico dispõe do furo e suas bordas, mas, não consegue montar, com seus órgãos, uma unidade corporal.

O sádico grita triunfante: “tive a pele do imbecil!”! Isso, ao obter o reverso do gozo do corpo da vítima. O voyeur tentará ver pelo buraco da fechadura o que está mais além da cena, e o exibicionista mostra o que o véu do pudor oculta.

Nesta segunda clínica do corpo também poderá ser localizado o que ficou fora das estruturas: a violência, cujo excesso passa dos limites das normas, o acting que coloca em cena o que o Outro não aloja; as tatuagens que tentam passar o gozo à palavra por meio da escrita, o fenômeno psicossomático que passa o gozo à escrita sem palavra; a angústia não localizada que não encontra um limite, a passagem ao ato que demonstra que o limite não existe; a depressão como queda da causa do desejo, as adições como acesso a um gozo que degrada o desejo.

A terceira teorização do corpo é mais complexa ainda, e poderíamos dizer que está em construção: a do acontecimento do corpo. Nela, o inaugural já não é a imagem especular, nem sequer poderíamos dizer que ele seja o furo topológico. Há algo anterior, que as produz, que é a entrada das marcas iniciais, contingencias de um gozo Um, que constituem o falasser. É outro corpo, o corpo vivo, o corpo em que ocorre o que Lacan define como acontecimento: “somente há acontecimento de um dizer”. Deve haver consentimento para esse dizer, que faz furo no corpo com o fora do sentido da lalingua, que faz ressoar a pulsão como eco no corpo de um dizer, e que o parasita com a linguagem. É, portanto, um corpo que fala. Como disse Lacan, é “o mistério do corpo que fala”. De forma mais simples podemos dizer: é um corpo falado por certas contingências de um dizer, que produziram acontecimento, e é um corpo que, com seu dizer, faz acontecimento.

Mas, há um problema. E isto é muito intuitivo. Desta terceira conceituação do corpo falta depreender sua clínica. Falta depreendê-la porque ainda não há. Para construí-la deveríamos tentar não explicá-la por meio das duas clínicas anteriores, porque com a primeira soubemos que o significante marcava o corpo e, com a segunda, que há gozo no significante. A terceira, talvez, inclui as duas anteriores, mas, então, o que a distingue? Já que uma clínica se baseia no particular da classe, talvez não se tenha que construí-la, mas, designar o que há de mais singular nesse corpo que fala. São muitas perguntas. Um Encontro Americano poderia nos servir, talvez, para respondê-las.

Pode ser que em 1998 o professor J.-A. Miller falasse com o bom Deus, e soubesse que haveria um ENAPOL em 2013 que se chamaria “Falar com o corpo”, que teria um cartaz um pouco estranho, com
alguns homenzinhos desumanizados e, por isso, escreveu em A experiência do real: “E falar com seu corpo é o que caracteriza o falasser. É natural que o LOM, algo desumanizado graças a esta grafia, fale com seu corpo”.

Tradução: Ilka Franco Ferrari

Bibliografia:

Dissolução imaginária: Lacan J., O Seminário, Livro 3, aula VII.
Corpo topológico: Lacan, J., O Seminário, Livro 9, aula do 16-5-62. Inédito.
Castração, falta e corpo: Lacan, J., O Seminário, Livro 10, aulas III, IV e VII.
Autista: Lacan, J., O Seminário, Livro 1, aulas VI e VII.
Esquizofrenia: Lacan, J., “O aturdito”, em: Outros Escritos.
 Sádico, voyeur, exibicionista: Lacan, J., O Seminário, Livro 10, aulas XII e XIII.
Tatuagem: Lacan, J., O Seminário, Livro 11, aula XVI.
Fenômeno psicossomático: Lacan, J., O Seminário, Livro 11, aulas XVII e XVIII.
O mistério do corpo que fala: Lacan, J., O Seminário, Livro 20, aula X. Eco de um dizer, no corpo: Lacan, J., O Seminário, Livro 23, aula I.

Nenhum comentário:

Postar um comentário