Desde o dia 16 de fevereiro foi colocada em linha A PETIÇÃO INTERNACIONAL PARA A ABORDAGEM CLÍNICA DO AUTISMO. Iniciativa do Instituto psicanalítico da criança - Universidade Popular Jacques-Lacan. Para assinar a Petição em linha acesse o site: http://www.lacanquotidien.fr
disponível em: Lacan Cotidiano 162
AUTISMO, SARAMPO E OUTRAS PÚSTULAS:
CRÔNICA DE UMA ESCROQUERIA
Gustavo Dessal
Em 1995, Rosemary Kessick, consultora financeira que vivia em Londres, precisou sair de seu trabalho por conta de uma tragédia familiar. Seu segundo filho, de acordo com suas palavras, nasceu com boa saúde e se desenvolvia sem problemas, conforme o modelo dos manuais de educação mais modernos. Porém, ele começou a sofrer de sintomas intestinais severos, seguidos de um distúrbio regressivo que o mergulhou num autismo grave, com perda da linguagem e do contato social. Para a senhora Kessick, o que aconteceu foi sem equívoco: seu pequeno William teve os intestinos danificados dias depois de ter tomado a vacina tríplice que imuniza contra a caxumba, a rubéola e o sarampo. Os médicos não estavam dispostos a seguir sua teoria e, em desespero de causa, ela se dirige ao Royal Free Hospital de Londres para encontrar o Dr. Andrew Wakefield, eminente especialista em doenças intestinais. O Dr. Wakefield nunca havia visto um caso de autismo, mas, diante da pressão angustiada e tenaz da Sra. Kessick, aceitou fazer uma colonoscopia na criança. Para sua surpresa os intestinos de William apresentavam um tipo de inflamação e de lesões que nunca tinham sido observadas anteriormente. No ano seguinte, Andrew Wakefield publicou um artigo na prestigiada revista The Lancet onde afirmava ter encontrado uma conexão entre o vírus do sarampo, inoculado pela vacina, e o autismo. Rosemary Kessick, que havia criado uma associação chamada: «Autismo alergicamente induzido», se transformou em uma militante ativa difundindo, a partir de todas as formas de fóruns e entrevistas, a descoberta do Dr. Wakefield. Sra. Kessick transformou seu drama pessoal numa cruzada contra a vacinação. As coisas chegaram ao auge quando o Dr. Wakefield, em uma coletiva de imprensa que teve um impacto importante na opinião pública e na comunidade científica, afirmou que a vacina tríplice viral deveria ser suspensa e substituída por vacinas separadas contra o sarampo, a caxumba e a rubéola, inoculadas com um ano intervalo entre elas. Milhares de pais se dirigiram às autoridades sanitárias em busca de uma resposta e o Ministério da Saúde começou a se interessar pelo problema. Muito rápido ele obteve aí uma divisão de águas. O Dr. Wakefield procurou sustentação para a sua teoria e se associou a John O’Leary, um expert irlandês em pesquisa de vírus. O’Leary criou um método capaz de seguir o menor traço de um resíduo infinitesimal de um vírus, e Wakefield lhe enviou amostras do tecido intestinal retiradas a partir das colonoscopias feitas em um grupo de doze crianças autistas, dentre as quais se encontrava William. Os resultados não tardaram a dar razão ao Dr. Wakefield: em todos os casos se encontrava a presença evidente da vacina contra o sarampo. As associações dos pais contra a vacinação infantil começaram a se multiplicar, não apenas no Reino-Unido, mas também em outros países. Consequência: o sarampo – que até então havia sido erradicado na Europa Ocidental – reapareceu em níveis epidemiológicos preocupantes.
As autoridades sanitárias do Reino-Unido começaram a considerar a teoria de Wakefield do ponto de vista epidemiológico, submetendo a um tratamento estatístico a correlação entre os casos de autismo e a vacinação. Sra. Kessick, decididamente determinada a apoiar o Dr. Wakefield, desencadeou uma campanha na opinião pública contra o Ministério da Saúde. «Os estudos epidemiológicos colocam fora de dúvida o efeito positivo da vacinação tríplice», alega um jornalista durante uma entrevista de Rosemary. «As estatísticas podem convencer alguns ou não. A mim, elas não convencem. Eu não tenho tempo a perder com as estatísticas quando estou diante de uma criança doente”, respondeu ela.
As autoridades sanitárias descobrem pouco a pouco algumas anomalias nas investigações de Wakefield e começam a duvidar. Parece que o método de pesquisa de vírus utilizado por O’Leary provoca resultados errôneos. O Dr. Wakefield muda-se para os Estados Unidos, depois de ser obrigado a pedir demissão das instituições britânicas onde trabalhava. Lá, ele não demora a ter destaque, alguns de grande importância na mídia, como Jenny McCarthy, uma manequim da Playboy, que se tornou jornalista e mãe de uma criança autista. Jenny, durante um programa de televisão de muita audiência, faz uma defesa apaixonada das teorias de anti-vacinação do Dr. Wakefield, mesmo depois de ter sido honrada com o Pegasus Award, um prêmio satírico atribuído pela Fondation Educative Jaime Randi, às pessoas que contribuem na difusão das pseudociências. As taxas de sarampo aumentaram também nos USA e, infelizmente, o número de autistas não diminuiu.
The Lancet, através de seu diretor, se retrata e publica uma nota desacreditando o artigo em questão. Brian Deer, uma jornalista notável do Toronto Star, começa uma investigação sobre Wakefield e descobre uma trama de corrupção que implica alguns pais de autistas, advogados ingleses e, evidentemente, o Dr. Wakefield, que pegou 400 000 libras para realizar um estudo que deveria servir para acionar na justiça uma indenização de vários milhões contra os laboratórios que fabricam a vacina tríplice. A criação, por Andrew Wakefield, de uma sociedade encarregada da venda de um teste para diagnosticar o distúrbio intestinal responsável pelo autismo, com o qual ele estimava obter lucros de vários milhões de libras, foi colocada também às claras.
Wakefield foi afastado da carreira médica, privado de seu título, e proibido de exercer sua profissão no Reino Unido e nos Estados Unidos. Rosemary seguiu sua campanha de anti-vacinação. Ela é autora de dois livros: Autismo e dietética, e Autismo e distúrbios intestinais, onde ela continua a sustentar a correlação entre o autismo e as doenças gastrointestinais. Ela não parece se interessar pela observação do Professor Stephen Senn, um dos estatísticos mais implicados nas investigações relativas às atividades de Wakefield: “Acredito que exista uma tendência natural em confundir o que pré-existe à consequência e a própria consequência. Ou seja, afirmar que, porque um acontecimento se produziu depois de outro, seja este último a causa.”
Mesmo que isso se tenha revelado uma escroqueria científica, prática em nada pouco habitual e bem conhecida dos prestigiados e honestos representantes do discurso científico (Cf. obra de Richard Lewontin, consagrada em grande parte a denunciar a trapaça científica), um grande número de associações de pais, tendo a necessidade de se apoiar numa etiologia “objetiva” do autismo, continuaram a sustentar sua causa como viral. Os profetas da mídia e os vulgarizadores científicos, associados aos grandes canais informativos, se transformaram em líderes de opinião, capazes de articular os interesses do mercado, a sensibilidade da audiência, a promessa de felicidade e o pragmatismo da “evidência”. As associações dos pacientes, manipuladas às vezes pelos representantes da indústria farmacêutica, ganham um poder cada vez maior, a ponto de exercer uma pressão política importante em alguns casos. Sem dúvida não é fácil se orientar nesse labirinto onde a boa fé pode ser considerada uma armadilha de ciladas obscuras. A psicanálise não é uma adversária da ciência, contrariamente ao que alguns membros da comunidade científica pretendem. Também não é a voz da consciência moral, papel que retorna à igreja católica, com a sua oposição histórica e obstinada ao desenvolvimento científico. Sua função pode ser mais modesta: receptora dos resíduos. Estes resíduos, restos, dejetos do discurso que caem do lado do inconsciente, se transformam, assim, em traços de uma identidade mais autêntica e singular do ser falante, seu código de barras subjetivo. A psicanálise não promete a cura, mas ela oferece um contexto respeitoso à fala daquele que sofre, inclusive daquele que sofre por não ter as palavras.
Tradução do espanhol: Chantal Bonneau
Nenhum comentário:
Postar um comentário