Desde o dia 16 de fevereiro foi colocada em linha A PETIÇÃO INTERNACIONAL PARA A ABORDAGEM CLÍNICA DO AUTISMO. Iniciativa do Instituto psicanalítico da criança - Universidade Popular Jacques-Lacan. Para assinar a Petição em linha acesse o site: http://www.lacanquotidien.fr
disponível em: Lacan Cotidiano 189
CLÍNICA [Automutilações]
“Adeus vitrine, bom dia dejeto!” Isso resume a história de Maria: a de um brinquedo quebrado com o qual não se sabe mais o que fazer. Seu corpo é esquelético, andrógino; parece uma marionete agitada por movimentos convulsivos. Nós a comparamos facilmente com um autômato: “Diríamos que ela está programada: quando é mudada, tem perturbações”. Ela tem também do autômato o movimento pendular.
Maria nasceu em 1990, ao mesmo tempo em que uma “gêmea” [1]. A desconexão do Outro se manifestou precocemente no nível do olhar pelo estrabismo, no nível da voz por um mutismo, no nível do andar pela inércia, compreendida como “recusa em aprender”. No começo da escolaridade, ao ser confrontada com a demanda do outro, ela começou a se bater. Com esse sujeito, o significante não produz a ordenação do mundo do qual o corpo faz parte. É preciso, então, ordená-lo para ela: evitar qualquer perturbação no fio contínuo de sua vida, dar-lhe referências, cuidar do seu corpo com gestos e palavras. Qualquer modalidade de descontinuidade, mergulha-a no desespero. Maria se dá, então, grandes golpes sobre o nariz e os olhos. O sangramento parece acalmá-la. Ela recompõe o rosto depois, retoma a palavra para dizer “Eu me massacrei” ou “Eu não me bati nas têmporas”. A entrada numa nova instituição, verdadeira revolução, vai desnudar a estrutura: ela está “sem o socorro de nenhum discurso estabelecido”. ¹
▪ TRATAMENTO DO OUTRO
A partir das referências da psicanálise, temos ajustado pouco a pouco, o percurso clínico, propondo um “tratamento do Outro”. Trata-se de oferecer ao sujeito, um laço social “protegido” que lhe ponha à distância do confronto com um Outro invasivo que ele combate. Um combate – aqui não no sentido metafórico – do qual Maria sai devastada. As repetidas contusões lhe dão um aspecto facial de boxeador.
As crises não se desencadeiam de forma aleatória. Nosso primeiro cuidado foi o de fazer um levantamento preciso delas para localizar as coordenadas.
1 – São nos momentos de passagem de um lugar ou de uma atividade para outra.
2 – São também as recusas ou formas de “não” que a arrasam, como se o “não” incidisse sobre todo seu ser.
3 – São, enfim, reações à demanda, mesmo benévolas. O desejo próprio do sujeito – em sua função de defesa – falta totalmente. Ela é, no entanto, totalmente passiva à demanda do outro. Assim, um dia ela começa a se bater na mesa até que o educador lhe diz: “Se você não gosta de omelete, você não é obrigada a comê-la”. Isso a acalma imediatamente.
4 – Ela se bate também em casa, quando ela vê sua irmã chorar. Ela é absorvida pela imagem do outro.
Sabemos pelo serviço, Maria morou algum tempo que a música a acalma, bem como os banhos que ela adora. Dois objetos eletivos que fazem limite entre ela e o Outro. Disseram-nos também que quando ela começa a se bater, proibir só faz piorar as coisas. Mas, aí está um saber que é inaplicável em virtude da força da fascinação que pode exercer o desencadeamento da pulsão.
▪ AS SESSÕES
O esquema das sessões com Maria é muito ritualizado. Ali também se inscreve a necessidade imperiosa de dominar o Outro, necessidade à qual o analista se mostra dócil. Quando vou buscá-la, ela se levanta imediatamente, me dá a mão, me conduz para o consultório. Suas primeiras palavras são sempre “Tomamos banho depois”. No intervalo, poucas coisas. Ela busca o contato. Rapidamente, ela se apropria de um bloco de papel. Ela desenha nele, a cada vez, uma espécie de turbilhão. A maior parte do tempo, é ela quem põe fim à sessão dizendo: “é isso aí, está bom!” Se tento prolongar, ela arranca autoritariamente das minhas mãos a caneta e o papel, pega minha mão e me carrega para a saída, retomando igualzinha a fórmula com a qual eu suspendi a primeira entrevista: “A gente se revê quinta”.
▪ UM ACONTECIMENTO
Lacan definiu a clínica com “o discernimento de coisas que importam e que serão maciças desde que se tenha consciência delas²”. É o que acontece. Maria começa a se bater violentamente. O analista se aborrece e lhe diz firmemente: “Se você se bate, eu paro a sessão!” Inesperadamente, ela se acalma imediatamente. Consideramos isto, um pequeno acontecimento. Isso mostra que é possível limitar o gozo. Esse freio está ligado ao significante: a sequência ou a interrupção da sessão. Uma transferência se estabeleceu. A chefe do serviço pôde frear uma crise em minha ausência, lembrando à Maria, a data da sua próxima sessão. Após ter emitido o signo de um encontro possível, ela dá aqui o signo de um trabalho possível.
O que foi que operou? Provavelmente, o fato de que o analista concorda em se separar dela. “A fantasia de sua morte, de seu desaparecimento é o primeiro objeto que o sujeito põe em jogo (...)³ Aqui, nada de fantasia, mas a questão – “O Outro pode me perder?”posta em ato, perante a qual, aceitamos o risco. Trata-se aí, do primeiro descolamento do sujeito do seu status de objeto do Outro. O risco de desaparecimento no real, que reitera a passagem ao ato, se encontra aqui deslocado sobre outro plano. Ela pode existir de outra forma que não seja numa posição de objeto mortificado sob o olhar do Outro. Os efeitos desta sequência serão retransmitidos pelo viés da reunião clínica.
Eis outro giro do trabalho: na volta das férias de Natal, ela se mostra agitada, queixosa. Seu rosto ainda está edemaciado. Ela pede o banho aos gritos. Depois de ter tentado acalmá-la, falando com ela, sem sucesso, o analista interrompe a sessão, um pouco chateado por vê-la ir embora sofrendo. Mas, na minha ausência ela retornará ao meu consultório. Dirá, então, à chefe de serviço: “Quero bater na minha gêmea”. A partir daí, as sessões mudarão. Ela me estimula a desenhar “Maria”. Eu o faço, nomeando uma a uma, as partes do corpo, mas ela para de repente o desenho e a sessão. A agitação para quando ela se aloja sobre o corpo do outro. Abre-se, então, uma série de sessões em que, apenas esboçada uma silhueta, ela interrompe o desenho e pontua com “agentesevêquinta”. Não sem ter depositado seu traçado imutável, contra a silhueta desenhada.
▪ ORIENTAÇÃO DO TRABALHO
Eis aí um sujeito tomado por um a-mais pulsional não localizável e buscando uma saída na automutilação. O único aparelho sobre o qual ela se apoia para tratar esse a-mais é o espelho. Levantamos a hipótese que o parceiro desse sujeito é a “falsa gêmea”, à qual ela está ligada por um “ou tu ou eu” mortal. O trabalho consistirá em destacar a significação mortal da imagem. De fato, que uso ela faz do dispositivo? Ela demanda simplesmente que o analista registre sua produção. Trata-se de uma produção minimalista, mas que tem seu peso. A clínica de sujeitos psicóticos regularmente se dispõe a tal depositação. Maria tenta extrair o objeto que seu acesso ao simbólico não lhe permitiu extrair? Por enquanto, a extração de gozo se opera para o essencial, no real, selvagemente. Ela pinta com seu sangue, pelo qual ela drena o Outro; ela pinta pontinhos vermelhos que agradam o olhar. Será que ela vai poder articular esta subtração de forma mais econômica?
▪ REUNIÃO CLÍNICA
Pouco a pouco, Maria se mostra mais presente, circula, toma mais facilmente a palavra, oferece sua ajuda e, principalmente, está mais acessível às solicitações. Numa reunião clínica, seu caso é regularmente evocado. Questões cruciais que se colocam no dia a dia: como agir com ela? O que lhe dizer? Pode-se deixá-la só? É claro que Maria colocava para cada um, a mesma e angustiante questão. Por exemplo: “Sobre a calçada do hospital, Maria se matava diante de mim; o que fazer?” Maria parece visar esse ponto: confrontar o outro com o impossível. Ora, foi precisamente a possibilidade de um trabalho que apareceu na sessão, seguido de um alívio. Esta sequência constitui um ponto de Arquimedes que pode ser formulado da seguinte forma: aceitar sua posição de sujeito – a “escolha” da psicose – não implica em consentir com qualquer modalidade de gozo. O que ficou visível foi que cada um retinha o “não”, por medo..., medo do pior. Um ponto se destaca: ou ela mantém o outro sob seu domínio, pelo corpo a corpo ou pela demanda incessante, ou ela se destrói. É essa sua maneira, em impasse, de se produzir como sujeito. Esta elaboração permitiu a cada um de se autorizar a inventar sua resposta e que se produzisse a possibilidade “de ter uma autoridade sobre Ella” que dependesse “de uma certa maneira de lhe falar”.
Se a construção analítica não se substitui pelo ato educativo – ela pode ajudar a cada um a encontrar referências diante do “fora da norma” do sujeito. Neste sentido, a construção do caso “bem sucedido” expira no encontro dos intervenientes com a criança.
Patrick ROUX
1 Lacan Jacques, “L’étourdti”, Autres écrits, Paris, Seuil, 2002, p.474.
2 Lacan Jacques, Ouverture de la Section Clinique, Ornicar? Nº 9, avril, 77, p.8.
3 Lacan Jacques, Le Séminaire, Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, (1964) Paris: Seuil, 1973, p. 195.
4 Laurent Eric: “Si Lacan diz que a gente pinta com o olhar, é que a gente pinta pontinhos”, Le Conciliabule d’Angers, Agalma, le Paon, 1997, p.218
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