Desde o dia 16 de fevereiro foi colocada em linha A PETIÇÃO INTERNACIONAL PARA A ABORDAGEM CLÍNICA DO AUTISMO. Iniciativa do Instituto psicanalítico da criança - Universidade Popular Jacques-Lacan. Para assinar a Petição em linha acesse o site: http://www.lacanquotidien.fr
disponível em: Lacan Cotidiano 168
▪ O autismo: primeiros tratamentos ▪
Por Maryse Roy, psiquiatra, responsável por uma estrutura interna de psiquiatria infantil
No hospital-dia, se princípios orientam o acompanhamento das crianças, eles não repousam sobre um programa prévio. O acolhimento de cada criança é uma experiência nova que não depende de nenhum saber preestabelecido. O saber se constrói com a criança graças à disponibilidade inventiva de cada um que com ela trabalha. Na relação com o espaço, com o objeto, com a língua, a criança autista testemunha um trabalho que depende de uma lógica. Devemos tomar dele a medida e acolher a lógica que permite à criança um tratamento da presença. Assim podemos acompanhá-la e fazer desta lógica uma alavanca que não seja obstáculo à emergência do sujeito.
Primeiro tratamento: a batida
Elian corre de uma sala a outra, de um armário a outro, avança, cabeça baixa, sobre a porta fechada, joga-se por terra, grita, bate-se, sobe nos móveis, agarra os objetos no alto de uma estante, joga-os, pega um objeto, interrompe subitamente sua relação solitária ao objeto, como que tomado por uma imperiosa necessidade de ruptura. Pouco a pouco, um espaço se desenha e se organiza, em seu grupo de acolhimento, graças a uma batida presença-ausência, aparição-desaparecimento, posta em ato com a massa de modelar. Essa batida é um recurso pois ela atenua a exigência da presença bruta do objeto, assim como da imagem: diante do espelho, ele reproduz a batida – abrir e fechar os olhos, sorrir-não mais sorrir, estirar a língua – recolhê-la.
Mais tarde, Elian retoma a batida aparição-desaparecimento do objeto acompanhado de uma primeira vocalização: «tá aí*» ou «num tá». Depois de ter colocado os óculos de sol e de tê-los tirado, ele diz «onde tá Caroline?» e depois «num tá».
* No francês: «y-est», «y-est-a», «y est où Caroline?», «y-est-a».
Segundo tratamento: a nomeação
Num primeiro tempo, o mundo se ordena em torno dos objetos; no entanto, Elian consente em se servir da presença dos adultos que o acompanham em seu grupo de acolhimento. Ele prossegue seu trabalho de lógico. Ele se aplica em nomear a cor do objeto, mas esta cor fica atribuída a esse objeto, excluindo que possa haver outro: assim, ele nomeia «carro vermelho» mas parece impossível que exista um outro carro vermelho. Depois, passando por uma série, Elian pôde pluralizar o uso do carro vermelho.
A entrada de Elian na Ilha verde se faz sempre com precipitação, ele está pronto a se lançar no movimento das crianças; entretanto, ele demarca uma parada, endereçando um bom dia a cada um de nós que cruza seu caminho. Elian se apodera de nossos nomes, que ele não esquece, e este modo de endereçamento ritualiza sua chegada.
Terceiro tratamento: o traço
Os dinossauros, lobos, macacos, ursos, que ele costuma encontrar vendo os DVDs em sua casa, colocam-no em presença de um universo do vivo que introduz novas dificuldades. Ele demonstra seu rigor pelo tratamento que aplica a esse bestiário, tratamento que passa pelo desenho do animal que C. e J., seus acompanhantes no grupo de acolhimento, devem executar. O desenho é um recurso do qual C. pode se apoderar quando Elian se torna o animal no real. O traço do desenho produz uma separação com respeito a essa coisa viva que o invade.
Uma manhã, desde sua chegada, ele está de quatro, ruge e grunhe. As tentativas feitas para separá-lo desta «coisa» não têm sucesso. Ele opõe um «não» às denominações de animais que C. lhe propõe, depois diz «Lobo». O número de uma revista na qual ele vê as imagens da publicidade de um desenho animado com lobos redobra as posturas de lobos com gritos. O desenho de um lobo feito por Caroline o apazigua.
Batida + Nomeação + Traço = Livre
No dia seguinte ele quer a revista onde pululam os lobos. Caroline o acompanha em sua busca de sala em sala, eles perguntam a uns e a outros, procuram e acabam por encontrar. De volta no grupo, Elian esconde seu rosto no livro, e pergunta: «Buscar no livro?», Caroline responde «O que é que ele procura?» Elian mostra furtivamente a imagem de lobos dizendo «não isso», ele abre e fecha muitas vezes o livro e diz: «Oh! Uma outra solução!» Ele abre o livro, coloca outros sobre ele, faz aparecer e desaparecer a imagem: «Oh! Ainda uma outra solução!» Ele esconde a imagem com suas mãos, depois nomeia as diferentes partes do corpo do animal e começa uma atividade de colorir.
Elian parece, com efeito, ter encontrado «uma outra solução», termo que acontece de fazermos uso no cotidiano do hospital-dia, e que ele então ouviu e adotou nesse momento em que o animal impõe menos sua face real. Desde então, a série de pequenos livros «Monsieur» «Madame»* substituem as revistas.
· Monsieur Madame é uma série de 92 livros infantis escritos e desenhados por Roger Hargreaves a partir de 1971. Cada livro coloca em cena um personagem que possui uma característica particular, por exemplo, Monsieur Lento.
Acontecimentos imprevistos
Elian amplia seu mundo. Ele nomeia as oficinas mas a nomeação impõe a exigência de ir à oficina. A proposta de participar em certas oficinas e não em outras tempera essa exigência. Desde a manhã ele enumera as oficinas que vão acontecer no dia, aquelas das quais ele participa e as outras. Elian encontrou uma nova maneira de ordenar o espaço e o tempo ; estamos incluídos neste novo ordenamento
Assim Elian vem ver Maryse: «trabalhamos com Maryse». Toda terça Elian vem à entrevista. Um bebê de brinquedo, nomeado por ele «bebê» ou «bebê para Maryse», inaugura o encontro.
Nessas sessões, ele escolhe objetos – trem, carro – que ele desloca sobre um circuito. Quando ele introduz bonecos, estes devem ter, cada um, um lugar bem determinado. Ele aplica aos objetos a alternância mais-menos: guarda-se – não se guarda, desaparecido- encontrado.
O circuito significante se complexifica, ele nomeia: «senhor», «senhor painel», «papa», «maman», «filha». Cada um utiliza a bicicleta na sua vez, os acontecimentos de repente ocorrem : um cai – «ele quebrou a perna», «curativo». Um pega a moto, o outro a quer. Cada um entra por sua vez na casa com um pequeno refrão: «Há um lugar, não, mas sim, há um lugar». O choque de carros encontra uma regulação com um retorno sobre o circuito. Ele aceita que eu intervenha para conduzir os carros e começar um intercâmbio pelas apresentações dos personagens entre eles.
De retorno das férias, ele me acolhe: «Ah, você está aí». Ele retoma o bebê que ele não utilizara desde o início «É Maryse, a doutora» e desta vez ele repara nos meus gestos para, por sua vez, reproduzi-los. Ele se interessa pelos diferentes números do jornal da Ilha Verde que ele denomina «o livro da Ilha Verde», jornal no qual figuram os desenhos, traços, histórias feitas pelas crianças. Ele busca as marcas de sua passagem, que identifica sem hesitação.
Pela primeira vez ele pega um lápis hidrocor vermelho e colore a folha de vermelho, não deixando nenhum espaço vazio. Interrogo: «Ele está com raiva?» «Não – me diz – ele está contente, feliz».
Desenho um boneco, depois um outro numa segunda folha, ao qual acrescento um chapéu e comento : « Um menino com um chapéu » e ele diz «Não, Elian não tem chapéu». Ao lado ele desenha um outro boneco e escreve Elian acima do primeiro boneco que desenhei.
Nada senão o significante, todo o significante, não esvaziado da falta, pleno rente à borda, sem chapéu, reina com toda a soberba autoridade sobre o corpo de Elian, intimado a servir esse mestre feroz, mas não sem rigor. É este, e o das pessoas que o acompanham, que vai permitir sutis deslocamentos e introduzir pequenos grãos de areia que o humanizam: são seus primeiros tratamentos. ₪
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