22.4.12

"Simbólico no Século XXI" - série para o VIII Congresso da AMP



Chegamos a nossa última postagem da série.
Amanhã, início do VIII Congresso da AMP - A ordem simbólica no século XXI. Já não é o que era. Quais consequências para o tratamento?... e a orientação lacaniana vem demonstrando suas particularidades.
"...a fragilização da ordem simbólica, no século XXI, nos obriga a repensar o ato analítico, a direção do tratamento, a interpretação, as entradas em análise, a transferência, os finais de análise, a posição do analista, conceitos fundamentais que permanecerão em questão durante nosso próximo Congresso..."
Rumo à Buenos Aires, Boa Viagem!!!

CRÔNICA CHINESA por Jean-Louis Gault
AS DUAS VIAS DA PALAVRA
Disponível em: Lacan Cotidiano 73
Hospital Psiquiátrico de Qingdao, província de Shandong, China.


Segunda-feira, 24 de outubro, 9 horas, a Dra. Zhang Shao Li, uma psiquiatra da instituição, realiza a apresentação de pacientes, Sr. L., que ela deseja que encontremos. Trata-se de um homem de 50 anos que consulta o serviço há 9 anos, pelo que se chama «uma depressão». Ele está atualmente internado pela sexta vez. Nas primeiras cinco vezes, ele ficou durante algumas semanas, em que sob efeito do tratamento medicamentoso, antidepressivo e ansiolítico, seu estado se estabilizou, mas no retorno para casa, «a doença depressiva» tinha avançado gradualmente. A cada nova hospitalização, ele teve que mudar a medicação para obter uma melhora de seu estado. Nesta vez, ele estava no serviço há 4 meses e, apesar da prescrição de uma nova molécula, ele continuava «deprimido».
Durante a entrevista, respondendo às primeiras questões sobre o motivo de sua internação, o paciente explica que sofre da «doença da depressão» e que espera que os medicamentos o levem à cura. Decidimos então rapidamente abandonar esta via de questionamento sobre a doença, para nos interessarmos por sua vida propriamente dita.
Ele é o último de três meninos. Nascido alguns anos antes da Revolução Cultural, ele diz ter sofrido muito nesse período. Seu pai foi um ex-oficial do Exército Vermelho. No início dos anos 60, decide abandonar a carreira militar, para responder ao desejo de sua própria mãe que havia chorado muito, a ponto de ter ficado cega, este filho que tinha conhecido as provas da longa guerra de libertação. Ela não queria mais que ele corresse o risco de se ver exposto a um outro conflito. Ele deixou o Exército e se desenvolveu com êxito na indústria, mas é pego por suas origens burguesas, no momento da ofensiva lançada por Mao, em 1966. Pertencendo à classe dos camponeses ricos, ele é exposto à vingança dos Guardas Vermelhos, é deportado para o campo, roubado de seus bens, submetido a humilhações de autocrítica e espancado.
Nosso paciente, então jovem aluno de escola primária, toma para si o peso da culpa paterna. Ele se envergonha a cada vez que precisa preencher as fichas de informações escolares e indicar a origem social de seu pai.  Quando ele escreve a palavra funong, «camponês rico», ele sente pesar sobre si um olhar de desaprovação. Ele procura se isolar dos amigos dos quais teme pequenas piadas, que atribui inevitavelmente ao pecado paterno de não ter nascido pobre camponês.



É durante este período, em torno de seus 5-6 anos, que acontece um incidente, já relatado a seu médico, mas que nós não conseguimos identificar o verdadeira esconderijo subjetivo. É primavera, ele está na praia, entre um grupo de crianças, catando frutos do mar. De repente, chega uma tempestade, as crianças assustadas se dispersam, ele vê duas crianças deitadas na areia, antes de fugir da praia e se refugiar em casa com sua mãe. Esta lhe conta que as duas crianças morreram atingidas pelos raios. A lembrança deste drama o acompanha durante vários anos e ele conseguiu esquecer um pouco ao final do colégio.
Da infância, ele guarda um medo de cães que tem até hoje. Ele estava com medo de ser mordido, especialmente por cães que encontramos no campo e ele atribui este medo ao temor que sentiu quando soube que seu pai foi humilhado e espancado, mas esta fobia não foi interpretada durante a entrevista.
O início do episódio atual, que o levou à internação, remonta a um acidente que ocorreu na estrada há 9 anos. Na época, ele é oresponsável bem quisto de uma filial do grupo para o qual ele trabalha. Ele é considerado sério e fez uma bela carreira. Neste dia, ele coordenou uma das reuniões realizadas com seus operários para os encorajar a melhorar a produtividade. Como de costume, para aproximar o pessoal e levá-lo ao caminho de melhores resultados, eles brindam bebendo à glória da empresa, acompanhada com o consumo de um número equivalente de copos de cerveja. Quando ele termina a reunião para ir para casa, no momento de dirigir sua moto, ele já bebeu muito. Ele não irá longe. Ele perde o controle de seu veículo e é projetado sobre um monte de pedras. Ele perde a consciência, quebra o queixo e é ferido no rosto. Quando acorda no hospital, ele se dá conta do que aconteceu, ele se cobre de críticas e teme ser punido. Acontece exatamente o contrário. Seu chefe o chama para perguntar sobre seu estado e saber notícias, mas nenhuma censura. Seus ferimentos se curam, mas ele não se recupera dessa falha de conduta. Ele perde o sono e não pode retornar ao trabalho. É finalmente encaminhado à psiquiatria onde inicia o percurso que resulta no encontro de hoje.
Em um momento, o paciente relata as sequelas que ficaram deste acidente, ele explica que foi operado no rosto e passa a mão sobre a face para mostrar de que se trata. Na verdade, nós não vemos nenhuma cicatriz, a reparação parece perfeita. Mas ele prossegue e articula o que quer precisamente dizer «Eu me sinto humilhado por ter sofrido este acidente, eu perdi meu rosto». Nós o parabenizamos por ter encontrado essa fórmula, que diz exatamente do que ele sofre desde esse acidente, «ele perdeu o seu rosto». Acrescentamos pensarmos que ele não tem «a doença da depressão». Ele recebe bem humorado esta notícia, mas acrescenta que se pergunta se não deveria continuar a tomar a medicação. Nós não o contradizemos. Terminamos o encorajando a falar com seu médico sobre este sentimento de ter perdido o rosto.
Durante a discussão, foi preciso nos explicarmos sobre a razão que nos tinha levado a dizer que ele não tinha «a doença da depressão». Ao que nós respondemos que embora o paciente apresentasse todos os sinais de um estado que podemos qualificar de depressivo, a questão era saber a que se devia este estado. Esse estado é ligado a uma doença natural, como é a tuberculose, por exemplo, que é suscetível de cura por meio de um tratamento medicamentoso, ou está ele em relação a outra causa? Nós nos referimos então ao ensino de Lacan: «Estamos deprimidos porque cedemos sobre nosso desejo. Saímos da depressão quando encontramos o caminho do desejo». Nós tentamos apoiar esta fórmula áspera, em referência à experiência de cada um, onde o desejo é o que a nosso ver temos que fazer em função dos compromissos na vida privada ou pública. Esta dimensão da responsabilidade subjetiva não escapou dos participantes do seminário.
Para dar conta da dimensão dada à entrevista nós temos explorado uma referência chinesa e temos sustentado que há duas vias da palavra. Nós escrevemos no quadro o caráter chinês do caminho, o «Tao», que dá seu nome a uma tradição que tinha chamado particularmente a atenção de Lacan. Há assim, como dissemos, duas vias na aproximação do paciente. A primeira é aquela da doença natural. Espera respostas do paciente, a coleta de um conjunto de fatos que tendem à objetividade, a partir dos quais podemos formar uma ideia da doença segundo causas físicas. A segunda via é a da doença, que nós propomos chamar de moral, em que o sujeito está implicado em sua responsabilidade. Disso resulta uma noção de doença em que sofremos pelo que fazemos, ou do que não fazemos. O paciente, temos sublinhado, deu o testemunho desse registro moral em que o que lhe acontece toma lugar. As sequelas que ele carrega no rosto são bem a consequência deste acidente, mas elas não se inscrevem na ordem física. Elas pertencem a uma dimensão moral, que o faz dizer, que «perdeu o rosto» por causa deste acidente, do que se sente responsável, e é por isso que ele se culpabiliza tanto.
A escolha de uma ou outra dessas duas vias da palavra condiciona o que é suscetível de recolher da entrevista com o paciente, concluímos. Ao seguir a via da doença natural nos impomos um tipo de discurso, na pesquisa de dados objetivos, em que as respostas do paciente encontram necessariamente onde se inscrever, mas onde ele mesmo não estará implicado como tal. A via da doença dita moral leva a implicar o paciente. Ele é conduzido a tomar a palavra em seu nome, não mais para fornecer informações úteis para a investigação do diagnóstico, mas para julgar o que fez ou não fez.
Esta apresentação se inscreve em um programa de um seminário, de uma semana, no outono, organizado em Qingdao, pelo quarto ano, pela Seção Clínica de Nantes. De segunda a sexta-feira, em cada manhã teve lugar uma apresentação de pacientes. A entrevista foi realizada em francês, através de uma intérprete que assegurou a tradução simultânea em chinês. Este ano, tratava-se de uma graduada da universidade de Qingdao, formada em Brest. Um seminário de estudos freudianos e lacanianos ocorre durante as tardes. Nós escolhemos desta vez, apresentar e comentar o caso do Homem dos Ratos.Em contrapartida, a cada ano 4 a 5 psiquiatras chineses são convidados a Nantes durante uma semana, onde participam do ensino prático, clínico e teórico, e se inscrevem em uma das sessões da Seção Clínica.
Qingdao  se pronuncia em francês «Tsintao». A cidade dá seu nome a uma das cervejas mais consumidas do mundo. Herdou da presença da concessão alemã, de 1898 à 1914, uma tradição de cervejaria que se desenvolveu consideravelmente. Situada na latitude das Ilhas Baleares, no Mar Amarelo, em frente a Coréia do Sul e a ilha japonesa  de Kyushu, cercada por dezenas de quilômetros de belas praias, pertence a Riviera Chinesa. Foi muito apreciada como balneário logo no início do século passado, onde o presidente Mao passava as férias de verão.
A penísula do Shandong é um dos berços da civilização chinesa. A três horas de viagem ao oeste de Qingdao, encontra-se a pequena cidade de Qufu perto da qual nasceu Confúcio, em 551 A.C.. Depois do período negro da revolução cultural, a cidade resgatou hoje a tradição universitária, e é possível encontrar nos inúmeros jovens que vieram estudar, o pensamento do grande sábio. A 30 km ao sul desta mesma cidade encontramos o povoado Zoucheng, onde nasceu Mencius, um século depois do mestre Kong.
Enfim, uma das cinco montanhas do Taoísmo, o monte Taï, está situada no Shandong, lugar muito frequentado pelos peregrinos.

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