15.5.12

Crônica: Poesias atuais



Disponível em Lacan Cotidiano 132


Contingência e poesia

“É acerca do que Lacan nos legou, com uma retroação que chegou até a apagar em larga medida a história da psicanálise. “Ele nos deixou com a necessidade de fazer com a contingência do real, quer dizer, também com a invenção e a reinvenção, sem nenhum fatalismo”. Jacques-Alain Miller, extraído de L’Orientation lacanienne, Tout Le monde est fou (2007-2008).  Ensino pronunciado na cátedra do departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII, curso de 30 de janeiro de 2008, inédito.

Em seu curso de 2008, Todo mundo é louco, Jacques-Alain Miller insiste sobre o real que preza a contingência (tient à la contingence). “Nada cessa de não se escrever entre os sexos”, diria ele. O real é ao mesmo tempo aquele da não-relação – é o real que se demonstra como impossível – e aquele do encontro que a relação amorosa pode trazer para sua incandescência - é o real da modalidade do encontro. O real como impossível é o real da lógica. O real da contingência designa propriamente aquele da psicanálise. Afirmando a contingência, nós fazemos surgir “o ácido” que destrói todas as categorias estabelecidas, todas as contagens, todas as ideias científicas que enunciam o necessário, o impossível. Uma consequência se deduz pela prática da cura sob a forma de questões clínicas: em que e como o real da contingência nos obriga a repensar nosso saber psicanalítico? Em que e como essa contingência é trazida pelo ato do analista, e se ela não é trazida por este ato é uma contingência somente de retórica? Em que e como ela é interna à cura?
Afirmando, com a psicanálise, o real da contingência – e não há outro real senão o encontro contingente – nós saímos do fatalismo do simbólico e dos ideais normativos – nós saímos do imaginário idílico. Uma consequência: a invenção e a reinvenção. Mas essas últimas não trocam carinho com o real (ne font pas ami-ami). Elas o encontram, sofrem dele, consentem ou não com as consequências – e uma delas é justamente que a vida não é um sonho, que ela não existe sem real.
Ao real da contingência chamamos – o efeito – mas podemos dizer também - esforço - de poesia e lemos justamente os poetas. É o que temos feito regularmente, aqui em Lacan Quotidiano, a propósito de Pierre-Yves SoucyJean Todrani e Christian Prigent .
       Em que a poesia interessa à psicanálise? Seria em nome da psicanálise aplicada, queridinha no discurso universitário, quer dizer, “do roça-roça literário do qual se denota o psicanalista de inventiva mediocre1” e que pretende enunciar julgamentos literários? De jeito nenhum. Lacan via nisso apenas pedantismo,  grosseria ou besteira2. Por outro lado a tese de Lacan, ao longo de seu ensino, é de que a poesia interessa à psicanálise a título da própria cura. Uma lembrança: já no Seminário IIIa poesia é deslocada dos puros jogos formais (em que se esgota a Poética) em direção aos novos efeitos subjetivos produzidos. Ela é “criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica no mundo3. Pelo significante, ela introduz o sujeito (quem produz a experiência) a um outro mundo que o nosso. É por isso que Jean de La Croix, Proust ou Nerval são poetas – e não Scherber, entretanto, “escritor”, seguramente 4. O poeta é um visionário – não Schreber cujo delírio é uma tentativa (subjetivamente apaziguante) de dar um sentido viável para um antes aí: o enigma de um gozo que começa a invadi-lo (em seu pensamento e em seu corpo).
       É no fim de seu ensino que a poesia se torna, em Lacan, uma referência determinante para a cura e seu término: em Momento de concluir, em 1977, ele assinala que “dizer é outra coisa que falar”. O analisante fala. Ele faz poesia. Ele faz poesia quando acontece, é pouco frequente “5.O ensino desses anos não limita a poesia unicamente à posição do analisante. O próprio analista exprime- se aí, notadamente na interpretação “...com a ajuda do que se chama a escritura poética você pode ter a dimensão do que poderia ser [...] a interpretação analítica”6. O corte,  a fratura, que fazem interpretação,  participam da escritura – “É por isso que eu digo que não é o que diz o analisante nem no que diz o analista, há outra coisa que a escritura”7. Lacan irá até colocar que a prática analítica “é muito mais a poesia”8. Essa definição extensiva da poesia vai junto com uma mudança de conceito – não mais o significante, mas a escritura com o real que ela cifra.
       Quando o analisante alcança a poesia? Quando o analista produz um efeito de poesia? Quando a psicanálise se torna poesia, ou seja, escrituraResponder a essas questões é introduzir um novo conceito: a letra, o litoral – que não é o significante nem o objeto – e extrair disso algumas consequências.
       Em “Lituraterra”, Lacan descreve o momento em que a letra se constitui: “É possível, do litoral, constituir tal discurso que se caracterize por ser emitido pelo semblante? Aí está a questão a que se propõe a literatura dita de vanguarda, a qual é ela mesma fato de litoral: e, portanto não se sustenta senão do semblante, mas, no entanto não prova nada mais que a fratura, que só um discurso pode produzir, com efeito de produção” 9. É quando os semblantes ordenados pelos jogos significantes se quebram, que a letra-litoral emerge. Este efeito, na literatura, cria, portanto a poesia de vanguarda – este efeito, na cura, cria um analisando de vanguarda, ou seja, um analisante quelituraterrize, e um analista que, como o poeta, realize “essa façanha de fazer com que um sentido esteja ausente [...]”10. 
       A este desafio, um poeta de hoje, sobre o qual nós já escrevemos, traz sua contribuição. Christian Prigent  tem uma definição forte: a poesia é sintoma. Por quê? Porque «o saber [de] a língua, que nos faz homens, nos liberta do mundo pretendendo no-lo entregar [...] a “poesia” é o lugar nevrálgico de exposição e de tratamento desta contradição que estrutura o falante [...]»11. Este afrontamento com as contradições da língua tem efeitos de sujeito. Pela língua eles serão consignados. «A escritura, portanto é um traço em que se lê um efeito de linguagem»12; eis aí ao que Prigent se submete. Em outros artigos nós desdobramos longamente este desafio e os meios utilizados por Prigent para atingir isso. Para hoje, isolamos somente isto: em 2000, ele publica L’Âme em P.O.L. É provavelmente um de seus melhores livros de poesia. Ao colocar a alma é o corpo que surge. Ela se ata a ele e o esvazia. Pode-se ler:
“é um furo d’alma amolado na
massa do corpo sem  
com que mugir ainda
senão que isso sente a doçura de ser  
forte à força de estar quase morto”13

(“est um trou d’âme meulé
dans
la masse du corps pas

de quoi meugler encore
sinon que ça sent la douceur d’être

fot à force
d’être quase mort.”)

O efeito acontece. As carnes apodrecem e a alma se isola como “furo” – “grande furo indistinto por toda parte: nojo! nojo!”14. Se a alma está bem “faz com que isso funcione”15, então se entende em que e como, ao se reduzir a um furo ativo, ela não deixe tranquilo o poeta: ela interroga “o que se pensa a propósito do corpo”16. Mas qual é esse saber reduzido a uma proposição? Que a alma é um dos nomes da causa e que ao se imiscuir nos ocos das carnes que ela faz corpo, a relação sexual é doravante impossível. O corpo se decompõe e tudo ao mesmo tempo é desejante: a alma, diz Lacan, é a identidade suposta “17 do corpo.  A poesia de Prigent demonstra em que essa identidade não é senão desesperadamente suposta. Ela ensina como “ascese”18.
A alma é o nome desse  sinthome que faz com que a poesia, tomada à letra, tenha ainda belos dias... Lacan não diz outra coisa quando afirma: “[...] o próprio da poesia quando ela rateia, é justamente não ter senão uma significação, ser puro nó de uma palavra com uma outra palavra”19. A significação vazia vem no lugar do pleno sentido. Coloquemos esta transformação como um nome novo do sinthome – não sem futuro,  para a poesia e para a psicanálise.
Continuemos então a ler os poetas. Proximamente falaremos de Philippe Beck (Poésies premières (1997-2000), Flammarion, de Jean-Marie Gleize (Tarnac, um acte préparatoire, Seuil), e de Florence Pazzottu (Alors, Flammarion). A questão: Como o real da contingência encontra-se aí tratado? Será nossa bússola.

Hervé Castanet

1. Lacan J., « Lituraterre », Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 12.
2. Ibid., « Hommage fait à Marguerite Duras du ravissement de Lol V. Stein », p. 192.
3. Lacan J., Le Séminaire, livre iii, Les Psychoses, Paris, Seuil, 1981, p. 91.
4. Ibid.
5. Lacan J., Le moment de conclure, séance du 20 décembre 1977, (inédite).
6. Lacan J., L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, séance du 18 avril 1977, (inédite).
7. Lacan J., Le moment de conclureop.cit.
8. Ibid.
9. Lacan J. « Lituraterre », op. cit., p. 18.
10. Lacan J., L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, op. cit.
11. Prigent C., À quoi bon encore des poètes ?, Éditions Erba, 1994, p. 25 (republié chez P.O.L, 1996). Voir aussi  L’Incontenable (2004) et Une erreur de la nature (1996) chez p.o.l.
12. Lacan J., Le Séminaire, livre xx, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 110.
13. Prigent C., L’Âme, p.o.l., 2000, p. 14.
14. Ibid.p. 10.
15. Lacan J., Le Séminaire, livre xx, Encore, op. cit., p. 103.
16. Ibid.p. 100.
17. Ibid.
18. Lacan J., « Lituraterre », op. cit., p. 20.
19. Lacan J., L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, op. cit.


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