14.5.12

SOBRE À ESCUTA EM PSICANÁLISE...


 A CRIANÇA QUE VIRÁ 

Disponível em Lacan Cotidiano 150

«Não há sentido isolado…» por Éric Zuliani

Desde que comecei a me encontrar com sujeitos muito jovens ditos autistas, num orfanato há uns 20 anos atrás, isto me aguçou o apetite para buscar as origens do autismo. Já havia nesta época muita coisa escrita sobre isto e, por me interessar pelas consequências decorrentes da posição singular destas crianças, acreditava que eles eram a sede de alguma coisa que os havia causado, e é a partir deste ponto que comecei a querer-lhes dizer algo.
Associo a este momento um episódio que confronta de imediato os resultados de nossa ação. Quando procuro Antonin, uma criança de três anos e meio, na sala de convivência, para um segundo encontro, recebo da auxiliar de puericultura a informação que nosso primeiro encontro havia surtido efeito. Antonin não se balançava mais por horas, dentro de um armário, mordendo até sangrar um de seus dedos, mas galopava ruidosamente à vista de todos nas diferentes direções. Ela também se perguntava como julgar este novo comportamento. Foi necessária uma discussão entre os diferentes profissionais para que se chegasse a um acordo de que se balançar incessantemente atrás de um armário não era uma vida. Decidi continuar a me encontrar com Antonin mesmo que não se compreendesse exatamente do que se tratavam estas novas manifestações.
A auxiliar de puericultura inventava diferentes tesouros para todos os momentos da vida, nada se tornava rotineiro. Ela inventava sob medida e sem o recurso de dar sentido a tudo isto, uma maneira de se levantar, de se alimentar, de se lavar e de se deitar. Curiosamente não tínhamos a impressão que isto respondia unicamente à necessidade, mas ao contrario, se iniciava desta maneira, delicadamente, o que se pode chamar de uma relação que era para cada um de nós o essencial.
Como nos encontramos regularmente isto me permitiu estabelecer uma distinção entre o fato de se comunicar e o de falar. Durante as sessões Antonin não falava, eu também pouco falava. No entanto muitas coisas se passaram ao redor dos objetos que permitiam pouco a pouco perceber a estrutura de linguagem na qual os encontros se desenrolavam. Nada ressaltava a observação de um pelo outro e tudo indicava a implicação de um e do outro.
Ao mesmo tempo comecei a me encontrar regularmente com alguém que se pode chamar de psicanalista e experimentei nesta ocasião um dispositivo no qual, justamente se fala sem se comunicar. Nesta época também comecei a ler um linguista muito conceituado, E. Beneviste que se interessava também pelo dispositivo analítico e estabelecia esta  mesma diferença, reservando a comunicação ao reino animal e o fato de falar aos seres humanos.
Os fenômenos onde a palavra, principalmente a dos outros, produzia efeitos, mesmo indesejáveis, provocavam em mim maior interesse do que saber o que a palavra poderia comunicar. Por exemplo, se alguma auxiliar de enfermagem dissesse vá para mesa, Antonin  se instalaria diante de sua cadeira antecipando uma refeição longa e tortuosa. No entanto se a mesma auxiliar se dirigia particularmente a ele, implicando a estrutura do “tu” e consequentemente do “eu”, Antonin permaneceria surdo e se houvesse alguma insistência ele poderia entrar numa crise terrível. Ele não entendia e, ao invés de constituir um equívoco revelando sua posição subjetiva, aparecia um número impressionante de audiogramas.
Havia a sensação de ter estabelecido uma relação que seguindo as orientações de Antonin, e que se tornou realidade, isto me parecia então que o estabelecimento de um laço social dependia  da idéia que se fazia da língua.
Podemos dizer com Jacques-Alain Miller que “a linguagem está na base da realidade social1”. Como conceber então a linguagem enquanto fundadora do laço social? A resposta é simples, nossa concepção é aquela de Victor de Aveyron2, e não a de seu mestre. Uma professora me dizia recentemente que Itard era a referência mais recente de seu orientador. Li em algum lugar, não me recordo onde, que Itard seria um precursor das terapias cognitivas comportamentais.
A história é a seguinte:  Itard é considerado um mestre esclarecido do comecinho do século XVIII. Filho das Luzes que se ocupava daquilo que remete à maior precariedade - os jovens surdos. Ele se apaixonou por uma criança que se poderia dizer selvagem - Victor. Isto se inscrevia num campo de reflexão sobre a função da educação como saída para um sujeito de sua condição social. Seu desenvolvimento era empirista e sensual. É conhecido o filme de Truffaut sobre este encontro. O próprio livro é o relato da história de um homem que queria estabelecer uma ligação social com “alguém” asocial: um mestre e seu escravo. Como Itard é honesto em seu relato ele descreve a operação para alcançar este laço social, mas também os fracassos.
Afinal no que consiste a lição que Victor acena a seu mestre? Itard propõe a Victor a seguinte tarefa: você receberá um copo de leite quando disser leite. A transcrição da cena permite perceber a obstinação presente nesta repetição diária. Victor não escuta. Não se trata de surdez, Itard se perguntava, mas de entender... de consentir com este tipo de laço social.
Itard nota, no entanto o laço afetivo que se desenvolve durante todo o tempo com a empregada da casa que não quer nada, uma jovem de doze anos que estava presente de tempos em tempos. Isto não funciona Victor não fala. Itard desanima e aí Victor agarra o copo de leite, bebe gulosamente e exclama: “Leite!” Mas o mestre não está satisfeito. Para ele isto não é falar.

Através desta seqüência Victor nos ensina que a palavra não tem só relação com a coisa, mas também que uma palavra reenvia à outra palavra, isto faz com que se produzam significações, e que a palavra tem a ver com que isto faça algo no corpo, “o gozo da coisa”, como diz Itard.
Falar sempre tem a ver com isso, podemos dizer que todos os discursos são tanto laços sociais quanto discursos sobre o gozo. O discurso toca o gozo sem cessar na medida em que é aí que ele se origina3. Lacan pode afirmar que falar é gozo. A experiência de Itard nos ajuda a compreender também que se alguém quer oferecer um copo de leite é bom conhecer a palavra leite, mas também saber um pouco de onde, desde qual lugar se oferece. O leite de Itard é um leite de linguagem, o leite social da demanda feita por um mestre. Mas este leite que se quer apreender se adquire sob a base de uma renúncia, renúncia ao gozo da língua que se deve substituir por uma ligação neste ponto a partir do qual ele é doado: isto se chama amor, e por amor pode-se compartilhar uma linguagem comum. Podemos desejar ter uma linguagem comum aos outros, falar de leite com os outros, estabelecer laço social, se fazer entender sobre o que é um leite gordo, isto por amor e tendo como base uma renúncia ao que faz com alguém possa se fazer o leite de sua língua.
Num artigo sobre o autismo Philippe La Sagna4 lembrava que nada pode se aparelhar dentro de um só sentido. É preciso se lembrar que em diferentes registros humanos - nas artes, nas ciências, por exemplo, mesmo na psicanálise - o sentido não é dado a priori. Da mesma maneira podemos constatar frequentemente que o sentido de um comportamento, de uma proposição, ou mesmo de uma vida, permaneça escondido tanto tempo que só podemos apreendê-lo a posteriori. Outros exemplos como o texto de Joyce ou de Roussel que, mesmo sendo bem escritos e, portanto permitindo uma leitura, não têm, no entanto, sentido. O sentido não é tudo nada experiência humana e é necessário muitas vezes uma análise para assumir isto e estabelecer apesar disso uma relação com um menino como Antonin.
O que fazemos exatamente quando nos encontramos, acolhemos, isto é, quando dizemos, “sim” a sujeitos que são como Antonin? Fazemos de tal maneira que a palavra não desapareça. E se esta palavra não se apoia no pé do sentido, isto não quer dizer que ela não se socorra de outro pé, que não falte jamais na experiência humana. Lacan deu o nome de gozo a este outro pé da palavra.

1 J.-A. Miller, «Vers PIPOL IV», Mental n° 20, p.186.
2 L. Malson, «Mémoires et rapports sur les développements de Victor de l’Aveyron par J. Itard», Les enfants sauvages, Paris, 10-18, 1964, p.160-171.
3 J. Lacan, Le Séminaire, livre xvii, L’envers de la psychanalyse, Paris, Seuil, mars 1991, p.80.
4 P. La Sagna, «Partager la planète autiste?», petite Girafe n° 27, p. 83-86.

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