16.5.12

▪ PEQUENA GIRAFA▪


 Disponível em Lacan Cotidiano 138

O autismo exclui o encontro ? por Hélène Deltombe

Falando do acompanhamento em relação ao autismo, porque a psicanálise produz medo? Se, no entanto, ela permite, o acolhimento de cada demanda ao nível onde ela é enunciada, cabe ao psicanalista esclarecê-la e assegurar a sua evolução, de tal maneira que aquele ou aquela que sofre encontre neste encontro uma abertura, às vezes, decisivo neste impasse que é o autismo.
A demanda inicial é, às vezes, formulada muito longe do que se joga verdadeiramente, necessitando muitas voltas antes de tomar a forma, o seu justo lugar, para finalmente tornar-se operante.
Basta olhar, o caso de Sabine, com oito anos de idade, que sua mãe me demanda receber, ao apresentar-me como uma menininha normal, insistindo neste ponto. Ela a descreve como uma criança bem integrada na família e na escola, que sabe brincar com as outras crianças. Conduzia-me -apenas sobre a insistência da escola, de que ela  fosse acompanhada, enquanto perseverava  em pensar, que era antes, a escola que não se ocupava bem dela. 
As primeiras perguntas que pude, entretanto, lhe colocar nesta primeira entrevista, permitiu-lhe queixar-se de um « defeito » de sua filha, o de «  nunca chegar a fazer uma escolha ».
Eu recebi Sabine e fui extremamente surpreendida, porque comigo, ela permanecia ausente, apenas manifestando-se deste modo : sentada, permanecia dobrada em duas, cabeça abaixada, jogando, às vezes, a cabeça para trás, e silenciosa, realizando precipitadamente e compulsivamente dois ou três gestos estereotipados.  O mesmo cenário se reproduzia de uma sessão à outra, sem que nada pudesse, nisso, colocar um fim. Devia me contentar em fazer a oferta de lhe encontrar na semana seguinte, não sem ter, no entanto, tentado estabelecer uma mudança nisso, durante o tempo da sessão.
O menor signo emitido por ela, mesmo que imperceptível, eu acusava recepção através de uma palavra, sem que isto alterasse algo,  salvo que, às vezes, rompia o silêncio em que estava emparedada, pronunciando com grande angústia duas ou três fórmulas sobre a forma de injunções que não pareciam vir dela e, que tinham o efeito de ritornelo. Em seguida, caia no mutismo e na inércia, permanecendo de novo no vazio. Eu me perguntava como considerar estas fórmulas. Queriam significar algo ou eram simples tentativas de evocação da angústia? Toda investigação da minha parte de ai fazer eco, de responder, resultava num fracasso. Sabine parecia congelada, petrificada sob alguns significantes, sem dialetização possível. Não detectava nela nenhuma demanda dirigida a mim, nenhum signo de subjetivação. Talvez isso correspondesse ao que sua mãe me havia assinalado como sua impossibilidade de « fazer uma escolha ».
Eu estava espantada. Não havia evidência de um encontro entre nós, e, no entanto, não era uma questão que podia renunciar, ou esquecer. Do seu lado, não me manifestava hostilidade, consentindo em permanecer na minha presença, mas na dor de nada poder exprimir, nada além, do que um extremo mal-estar pessoal. Como podia existir uma tal distância entre o quadro que sua mãe me havia desenhado dela e esse que ela me mostrou? Ela se mostrava mergulhada em um vazio sideral e, tentava sair deste abismo debatendo-se com alguns gestos vãos e algumas fórmulas ocas, ou seja, irreprimíveis. Podia apenas reconhecer todas as características do autismo, e devia encontrar um jeito de avançar, inventar soluções, neste caso onde as coisas não eram mesmo nomeadas. Devia responder a esta questão colocada por Jacques Lacan : « Trata-se de saber porque há algo no autismo  […] que se congela »1.
As palavras entre mãe e filha na sala de espera me ofereceram uma pista para abordar as coisas diferentemente. Em várias oportunidades, eu descobri que a mãe falava muito com Sabine, modulando sua voz diferentemente, conforme o que ela lhe pusesse como questões, ou que ela mesma lhe fornecesse as respostas, convencendo-se que a sua filha, que permanecia silenciosa, estivesse implicada em sua comunicação, tinha levado em conta e  assimilado tudo o que ela havia dito.
Continuando, ao mesmo tempo, como  planejado a acolher  Sabine a cada semana,  recebi sua mãe para lhe colocar algumas questões que estavam se tornando indispensáveis para prosseguir o tratamento. Eu não queria me encontrar com ela em uma situação arriscada e insustentável que teria podido um dia levar a um impasse, se não fosse progressivamente levantado, não atingindo um diagnóstico, mas procurando colher elementos úteis, na sequência de meu encontro com sua filha. Eu soube, então, o drama que tinha marcado os primeiros meses de seu nascimento e as consequências graves que tinham resultado sem que sua mãe tivesse identificado as relações de causa e efeito : Sabine permanecia dia e noite com os olhos abertos em seu berço, ela nunca demandava nada, nem mesmo comida à sua mãe, não chorava, não balbuciava nada.
Encorajada por estas confidências, sua mãe pode me confessar o que procurava esconder : a escola não queria aceitar a sua filha,  por seu comportamento violento e sua rejeição em relação aos outros, assim como, eram enormes a sua falta de investimento escolar. Ela foi retirada da sala de aula, pois não se exprimia, não trabalhava. Sua mãe reconheceu, então, em qual ponto, ela tinha feito tudo por sua filha – no lugar da sua filha,  nós diríamos –, querendo desesperadamente acreditar abrir-lhe, assim a via.
Procurando junto à sua mãe, como remanejar a existência cotidiana de sua filha, eu continuava a receber  Sabine que se defronta infinitamente com a mesma impossibilidade de fazer entrar em jogo sua subjetividade nas trocas, alternando sempre inércia e gestos estereotipados. Até o dia em que tentei cortar bruscamente o horror desta situação que se prolongava apesar de todas as minhas tentativas para nisso introduzir modificações. Tomei uma das fórmulas que ela, as vezes, recitava de maneira monótona : « Apresse-se, é preciso se apressar, é preciso acelerar ! » Fiz a aposta de que, mesmo que se tratasse, sem dúvidas, de uma fórmula banal de uma mãe de família apressada que ela repetia em ecolalia, aquilo vinha, talvez, dizer também algo dela. Portanto, tentei fazer-lhe subjetivar estas poucas palavras. Ligeiramente me inclinei sobre ela e recordei-lhe os primeiros meses de sua existência, passados em uma incubadora, sob o barulho da máquina e a contenção da aparelhagem necessária a sua vida, sem ser tomada nos braços, na ausência de seus pais bastante afastados do lugar de cuidados, sem poderem vê-la frequentemente. Por dedução, disse-lhe com emoção da minha convicção de que ela havia sofrido de solidão, até o desespero, mergulhada no terror. Acrescentei : « Ninguém falou contigo, era urgente te salvar e,  ninguém se “apressou” ! Você permaneceu terrivelmente só. »
Pela primeira vez, para minha grande surpresa, ela reagiu ao que lhe dizia. Com efeito, pôs-se imediatamente a dizer, em um estado de grande pânico, balançando-se violentamente para frente e para trás : « Foi difícil, foi muito difícil ! » Ela multiplicou os gestos estereotipados, como para evocar a emoção. Então, sem que nada viesse anunciar, ela pô-se a proferir uma algaravia ininterrupta, numa jubilação intensa, muito concentrada no que enunciava, e pela primeira vez, eu a senti apaziguada por sua própria palavra, ela levantou o seu rosto que se iluminava ; ela estava num « puro gozo non-sense »2. Eu era forçada a reconhecer, apesar desta dimensão do non-senso, que desta vez ela estava realmente presente, ela parecia enfim poder  habitar seu corpo, graças a essa palavra  que se estende no campo da alíngua lalangue), segundo o vocábulo inventando por Jacques Lacan no final de seu ensino para designar o modo no qual a alíngua intervem no ser vivo, « sempre sob a forma do que chamo de um palavra, que quero tornar o mais próxima possível da palavra lalação (balbucio das crianças quando começam a falar)- alíngua  lallation – lalangue »3Esta relação à linguagem, Sabine não tinha podido experimentar nem atravessá-la em sua primeira infância, ela a realiza agora na relação transferencial. Esta produção nova surpreendente, acompanhava-se de uma busca de contato, ela me estendia as mãos pronunciando uma profusão de fonemas extremamente variados.
Ela tinha permanecido desde a origem sem voz e sem poder se inscrever numa significação. Apenas um encontro com a autenticidade do seu desamparo pode iniciar um encontro que tem continuado desde então.  Ela foi tocada pelo sentido do que lhe disse sobre sua experiência primária na existência ? A intonação de minha voz foi decisiva para permiti-lhe um primeiro tratamento do real insuportável onde primeiramente mergulhou ? Foi, em todo caso, um primeiro tempo de emergência do sujeitoEla fez assim sua verdadeira entrada na linguagem por uma amarração entre real, imaginário e simbólico com a alíngua ( lalangue) que constitui para o falasser (parlêtre) um primeiro tratamento do real em jogo. Isto resultou em efeitos subjetivos, em particular um momento depressivo transitório que lhe permitiu formular uma primeira demanda aos seus pais, importante para o curso de sua vida, uma demanda que eles souberam levar à sério. Assim o encontro com o analista lhe permitiu « se opor, a que seja, o corpo da criança que corresponda ao objeto a »4.



1 Lacan J., « Conferência em  Genebra sobre o sintoma(1975), », Opção lacaniana, EBP, dezembro, nº23, 1998,   p.13.
2 Miller J.-A., «A orientação lacaniana. A fuga do sentido » [1995-1996] ensinamento pronunciado no Departamento de psicanálise da Universidade de  Paris VIII, aula de 7 fevereiro 1996.
3 Lacan J., « Conferência em  Genebra sobre o sintoma(1975), », Opção lacaniana, EBP, dezembro, nº23, 1998,   p.9.
4 Lacan J., « Alocução sobre as psicoses da criança », Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,  2003, p.366.

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