29.4.12

Clínica do Autismo - série AUTISMO




Desde o dia 16 de fevereiro foi colocada em linha A PETIÇÃO INTERNACIONAL PARA A ABORDAGEM CLÍNICA DO AUTISMO. Iniciativa do Instituto psicanalítico da criança - Universidade Popular Jacques-Lacan. Para assinar a Petição em linha acesse o site: http://www.lacanquotidien.fr

disponível em: Lacan Cotidiano 144


INSTITUTO PSICANALÍTICO DA CRIANÇ

Daniel Roy nos enviou um novo artigo da IPE. Marie-Hélène Issartel, psiquiatra e médica hospitalar em Lyon, membro da ECF divide conosco seu maravilhoso e singular encontro clínico com uma criança que chamaremos de Bob. Atenção. Queiram, para o bem-ler de vocês, não esquecer a senha sem a qual vocês não entrarão: “Pregador de roupa verde”.

« Uma prática de funâmbulo »

Bob tem seis anos quando chega ao Hospital-Dia. O diagnóstico de autismo tinha sido feito um ano antes por um Centre de Ressource Autisme (CRA). Por essa razão, ele participa de um programa educativo rigoroso: quatro sessões de foniatria por semana e uma sessão de psicomotricidade. Na escola, onde é admitido no último ano do maternal, é acompanhado por uma AVS (auxiliar escolar). Ele faz as fichas que a foniatra lhe dá e que ele repete à noite no computador com sua mãe.

                                      O pregador de roupa verde (1)

Durante nosso primeiro encontro, Bob entra de costas, grita, chora. Ao longo da entrevista pede o tempo todo “o pregador de roupa verde”. Os beijos e repreensões de sua mãe, que o pega no colo, são impotentes para acalmar o seu desespero. Então, bem devagar, me aproximo de Bob, sento-me não muito longe dele e lhe proponho um pincel atômico verde. “Não, ele grita sem me olhar, isso não é um pregador de roupa”. A criança não se deixa enganar por minha oferta, um objeto da realidade não equivale a um outro objeto, mesmo que seja da mesma cor.
Na segunda entrevista, Bob repete a mesma cena: atormenta a mãe pedindo-lhe o pregador de roupa verde. De novo, Bob evita o meu olhar. Ele aceita no entanto desenhar uma escova de dentes ... laranja.
                                                                      
“Falado pelo Outro”

Diagnosticado “autista” por um CRA, Bob não deixa de manter uma relação com a língua do Outro: ele repete em eco as frases que ouve, especialmente as ordens do Outro, de maneira mecânica com uma voz atonal. Por exemplo, ele diz: “A gente diz “oui” e não “ouais[1]”, “Não coloque em cima da mesa”, ou ainda: “A gente não está vendo nada, está muito escuro. Desce a flecha, posicione lá em baixo, à direita”, todas essas palavras ouvidas e ditas fora de contexto. Para Bob, a voz como objeto pulsional não coloca em jogo nem o sujeito que ele é, nem seus afetos.
“Mas o problema são as refeições” diz o pai. Bob aceita sentar-se à mesa com os pais e o irmão, mas recusa-se a comer. Ou melhor,come o que ele quer, ou seja, cereais, cream crackers, bolos de chocolate, fora das refeições, de preferência em pé na frente do computador. “É nessa área que a coisa não anda - diz ainda o pai - no resto, na linguagem, no comportamento, há progresso”. Fico sabendo mais tarde, inadvertidamente, que a criança toma várias mamadeiras por dia e que não adquiriu os hábitos de limpeza: ele se retém durante o dia todo e faz suas necessidades na fralda que ele usa à noite. 

                                                                     “Objeto dito autístico”

No Hospital-Dia, Bob chega com um objeto que eu não tinha observado durante os nossos primeiros encontros: uma caixa de DVD vazia que ele traz aberta por uma fenda central tal como uma borboleta, em suas costas ele colocou fotos de seus “heróis” preferidos, Titeuf, o cantor Iz ou outros personagens de histórias em quadrinho. Um pregador de roupa fixado sobre a borda da caixa como umautodirecteur[2] lhe permite explorar o espaço e os objetos fazendo vibrar o conjunto com um gesto do pulso.
O objeto autístico de Bob realiza uma montagem complexa que associa o vazio da caixa, fotos e um prendedor de roupa.  É um objeto singular do qual ele raramente se separa. Essa invenção lhe serve de objeto explorador com o qual ele toca levemente a superfície dos objetos, segue os planos verticais das paredes e as arestas dos móveis. As vibrações incessantes que ele impõe ao conjunto o animam, o vitalizam no sentido de torná-lo mais vivo, mais alegre. Sua perda provoca gritos e choros que se acalmam somente quando a criança reencontra o objeto. Podemos aqui formular a hipótese de que esse objeto tem duas funções: uma função de duplo e uma função de “condensador para o gozo”, para a parte do vivo que lhe cabe.

                                     
                                      O prendedor de roupa verde(2)

Quando cruzo com Bob no corredor do Hospital-Dia, ele não me vê, passa ao meu lado sem me dirigir o olhar, evitando a mão que eu lhe estendo. Um dia, enquanto ele estava sentado no chão junto a uma outra criança, eu me sentei ao seu lado e disse: “Se a gente falasse do prendedor de roupa verde”. Nesse momento, Bob vira-se para mim e me dá um largo sorriso. Desde então, o prendedor de roupa verde se tornou a nossa schibboleth, nossa senha. Para convidá-lo a vir em meu consultório, basta que eu lhe diga “Você quer vir falar do prendedor de roupa verde?”, a criança deixa o seu campo de explorações e me acompanha em minha sala.
O que é “o prendedor de roupa” para Bob? Nós não sabemosse não for para que ele possa compartilhar esse significante comigo para criar as condições de um encontro.
                                                
                                                                         A língua “Reuk”

Ao longo do trabalho, novos sintomas apareceram: Bob bate as portas e emite um som, um “Reuk”, que impede qualquer troca verbal. Como compreender e tratar essas novas produções sintomáticas? Bater as portas ao ponto de tornar a vida do Outro insuportável, emitir uma série de “Reuk”, não é um maneira de colocar o Outro à distância, de se proteger de suas demandas e de seus dizeres? Para fazer calar as portas, decidi fazer de Bob meu porteiro! Cada vez que eu tinha que passar pela porta do Hospital-Dia ou do meu consultório, eu lhe pedia para abrir ou fechar as portas para deixar o Outro de fora. Um certo apaziguamento se seguia, pelo menos durante o tempo da sessão. Comecei também a aprender a língua dos “Reuk”: eu repetia depois dele, mas a ritmos diferentes e em alturas de voz variadas, as séries de “Reuk”, o que fazia com que ele risse muito. Eu propunha também escrevê-la no teclado da máquina de escrever. Assim, “Reuk” tornou-se um jogo entre ele e eu que consistia em encontrar a boa letra para escrevê-la. De fato, fazer de Bob meu porteiro e falar a língua dos “Reuk” permitiu obter uma sedação, às vezes um silêncio; mas não seria somente uma maneira de reduzir as defesas da criança contra as intrusões do Outro (das palavras do Outro) e impedir que surgisse uma palavra que o engajaria? Isso coloca a questão sobre o que fazemos com essas crianças: como se ocupar delas sem suscitar sua defesa? Isso nos deixa perceber o forçamento que pode constituir uma reeducação foniátrica muito intensa.
Depois das férias, Bob me pede “para vir falar de...”, ele não termina sua frase. Eu retomo seu pedido sem completar: “vir falar de ...”. Bob insiste: “a gente vai falar de...”, sua frase fica suspensa. Será que ele abandonou o seu significante? Seu objeto? No consultório, a criança não fica à vontade, fica silenciosa e sua inibição é total. Eu lhe proponho procurar o prendedor de roupa dentro de sua sacola de brinquedos. Bob então se anima, articula o prendedor a um graveto semi-rígido e retoma suas explorações e nossas interações.

                               Começo do engajamento na palavra

Uma mudança apareceu em nossos encontros: se Bob ainda gosta de brincar de “Reuk”, os sons emitidos estão menos fortes, menos agressivos. Ele desenvolve uma verdadeiro falatório, formado por fragmentos de discurso: “Coloque isso na vasilha. Acho que esse objeto combina com os da cozinha. O que é que o h canta? Ele não canta nada, o h. O h é mudo”, uma série de palavras sem sujeito, testemunhando o deslocamento da defesa. 
Decido não brincar mais de “Reuk”, sem no entanto proibi-lo, mas repito suas frases feitas para construir cadeias articuladas ou mesmo, as vezes, para dar início a um começo de diálogo. Por exemplo: “Ele canta o que o h” – Ele canta o que o h? Qual “ Hache”[3]? – “Ele não canta nada o h” - Ele não canta nada? – “Ele é mudo” - Ah! a letra h é muda mas Bob não. Bob não é mudo. Qual não foi a minha surpresa, quando a sessão estava terminando, ao ouvir Bob dizer: “Está na hora de ir comer”, está na hora do Reuk”! Na sessão seguinte, no momento em que ele retomava sua frase: “Está na hora do Reuk, está na hora de comer” mais baixinho, eu lhe perguntei: “O que quer dizer Reuk?” e eu ouvi ele me responder: “Manteiga, pêra”. ManteigaPêra o que mais?”- “Quer dizer que a gente é alguma coisa” diz ele. Eu interrompia a sessão e lhe dava parabéns e o levava até a porta.
Fortalecida por esse primeiro engajamento na palavra e apesar de Bob continuar a repetir as palavras que o invadiam, dos desenhos animados ou do Outro sob a forma de instruções recebidas na escola ou em casa, decidi escrevê-las considerando-as como dizeres da criança, enquanto era ela que as dizia. Podemos formular a hipótese, tendo em vista o interesse que Bob mostra por suas sessões, de que elas lhe servem para tratar todas essas palavras ouvidas que o traumatizam.

Tomar corpo
Se Bob aceita comer pão, de preferência o do enfermeiro que está assentado ao lado dele, se às vezes ele aceita uma colher de macarrão ou alguns grãos de arroz em seu prato, ele não precisa de ajuda para comer os bolos de chocolate no lanche! Agora ele aceita ir junto com as outras crianças ao banheiro, começa a dar descarga ou a fazer xixi em pé quando o enfermeiro o acompanha. Tendo reduzido seu objeto chamado autístico a um simples graveto ou a uma palha articulada a um pregador de roupa, ele encontrou agora um duplo junto a uma outra criança internada ou a um enfermeiro.
Para se fazer parceira de Bob, assim como de qualquer criança autista, é necessário muita delicadeza e respeito. Acolhê-lo como ele é, saber fazer de seus objetos achados, invenções singulares, não suscitar a defesa, permitem estabelecer um esboço de diálogo que lhe autorize começar a abordar sua solidão. Marie-Hélène Issarte 

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