4.5.12

SOBRE À ESCUTA EM PSICANÁLISE...


URGÊNCIAS TRANQUILAS
Por Virginio Baio
Disponível em Lacan Cotidiano 195



Uma criança autista nasce cruzando um atalho singular entre muitos


Uma mulher, professora de literatura, que tinha em sua classe uma criança autista, depois de ter ido conhecer a experiência da Antenne 110 em Bruxelas, convidou-me para falar em sua escola na Itália repetidas vezes, diretamente com seus alunos, com os professores e os pais inscritos em um ciclo de seis conferências. Estava convencida de que a experiência fincada por Antonio Di Ciaccia na Bélgica poderia enriquecê-los. Experiência difícil para mim, mas igualmente rica em novos acontecimentos surpreendentes.

Nas mil versões da urgência, nos fazer partidários do real de Marco, nos fez descobrir uma alegria nova, que desejo dividir com vocês.

Nada aquieta uma mãe – cravada pelo horror de não encontrar ninguém para tirar seu filho de comportamentos violentos, horríveis, insustentáveis.

O real urge Marco bate sua cabeça contra o solo, contra a parede, morde, foge, sob os olhos impotentes dos seus.

Para a mãe, isso urge Desesperada, a mãe atravessa a Itália à procura de psiquiatras, médicos, psicólogos, pressionando-os para nomear este real, e se fazerem parceiros de seu filho. «Tumor no cérebro» diz um. «Problemas genéticos» diz outro. «Não está doente» diz ainda um outro que se desculpa em seguida: «Trata-se da síndrome de Moebius». Terapeutas o recebem, outros estão prestes a recebê-lo, sob a condição de que mamãe não se intrometa. Enfim, ela encontra alguém que se diz «uma operária de Lacan».

Uma rotação, já… Nos anos anteriores, aquela que se apresentará à mãe de Marco como «operária de Lacan», sua fórmula para se dizer psicanalista, era a professora de letras Adele Marcelli que nos havia encontrado na Antenne 110, e que gritava por socorro. De fato, ela se sentia perdida frente a um menino (genial, mas com comportamentos loucos) que surgiu em sua classe. Encontra então Lacan, sua clínica e seu ensino em Bruxelas, através da Antenne 110. Voltou entusiasta. Utilizou-se do que viu, falou e difundiu sua descoberta nas escolas da região, organizando seminários, ateliês para os professores, pais ou estudantes.

A operária de Lacan A posição a partir da qual a operária responde à mãe, inaugura o ato de «se fazer incluir» como parceira de Marco. Como? A operária, ao primeiro encontro, se endereça a Marco para lhe perguntar se pode falar com sua mãe. Um outro ponto é decisivo para a mãe: ela lhe diz que Marco «já está trabalhando» do momento em que ele conseguiu se acalmar com um livro entre as mãos. A «operária de Lacan» aceita receber Marco com a condição de que a mãe possa lhe falar dele regularmente, baseada em sua experiência no Antenne 110.

…e a construção de Marco Marco se põe a elaborar, infatigável, fazendo de seu órgão suplementar o instrumento de seu saber. Ele faz malabarismos com as palavras, ele escreve, calcula, traduz os astros, o planeta em circuitos nomeando o corpo... A mãe se dedica a «oferecer seu saber», não como paciente ou uma co-cuidadora da «operária de Lacan», mas encontrando-a ela também, com seu marido, para avaliar o trabalho de Marco.
De uma posição de presa do real, a mãe passa a uma posição de sujeito, tornando-se analisante de seus problemas, de sua vida, de mulher, de esposa, de seu Outro.

A mãe, urgência de saber Instigada e curiosa pelo que Lacan diz do autismo, da psicose, da prática das instituições, a mãe não para de ler, de estudar os textos, os esquemas, o grafo. Ela não perde nenhuma conferência sobre a clínica do autismo e sobre a psicose, com palestrantes da Antenne de Bruxelas e de outras instituições, que se inspiravam na clínica de Lacan e trabalhavam a partir da «prática entre vários» na Itália. A mãe de Marco não somente segue (este ensino, ou tudo aquilo?) com interesse, mas também intervém e coloca questões.

A mãe, urgência de testemunhar Eu havia organizado em Pisa1 um congresso sobre «autismo e psicanálise» com as instituições italianas.  Por ocasião da vinda de quatro colegas de Antenne 110 à Pisa (Bruno de Halleux, Gwendoline Possoz, Pierre Jacobs e Valérie Lorette) convidei a mãe de Marco. Ela falou, de maneira sóbria e precisa, de sua luta obstinada para encontrar uma parceria competente.
No decorrer de um segundo congresso «Escola e Psicanálise», organizado por SOS-professores, em Pisa, a «operária de Lacan», assim como Cristina (psicóloga, exercendo a função de professora assistente) e a mãe de Marco, pediram novamente a palavra. A mãe de Marco usou palavras severas em relação aos especialistas que ela havia encontrado: «Eles acreditam saber, no entanto, só sabem uma coisa: para eles nós somos sempre um problema».

Apresentação do caso de Marco A “operária”, convidada pela Antenne de Pisa para dar um seminário, me propõe falar do trabalho que ela realiza com Marco. A mãe quer estar lá também. Eu aceito, mas o analista que comentará o trabalho não foi avisado da presença da mãe.

A mãe, a aposta
O tato e o pudor das palavras do analista e da “operária” levam a mãe a apostar: “Um dia virei às suas reuniões. Com meu filho»!

Laboratório NPQ2: desbussolados
No sábado, 30 de setembro, dois professores auxiliares pedem para falar, no laboratório do NPQ de Livorno, dos resultados - segundo eles - espetaculares que obtêm; para o primeiro professor graças à presença do cavalo (equiterapia)! No entanto, isso termina mal. O segundo professor considera como um êxito que o aluno que ele apoia possa ficar na classe, sob condição de que ele próprio, o professor, seja obrigado a ficar fora da classe.

Laboratório único
A mãe de Marco pede para participar desse mesmo laboratório com seu filho. Para isso eles percorrem centenas de quilômetros. Marco e a mãe não conhecem os participantes do laboratório, nem os dois professores. Isso não os impede de se sentirem à vontade. Marco se instala no divã, observa os livros de minha biblioteca, os pequenos objetos, as fotos... Eu apresento Marco e sua mãe. Marco fala da instituição italiana por onde passam quase todas as crianças para que lhes façam um diagnóstico. Fala das violências que acontecem numa escola, («um menino bateu nos professores», embora essa escola deveria ser um exemplo de excelência). Enquanto acontece o laboratório, ele descobre três quadros em minha biblioteca. Ele os observa, depois, com um gesto preciso, desenha os personagens de Peach & Daisy. Levanta-se e, fazendo a volta, coloca para cada um de nós, sentados em círculo, duas questões: «Você os conhece? Você gosta deles?». Não espera nossas respostas e continua pondo as mesmas questões a seu vizinho. Quando chega a minha vez, eu viro a cabeça para introduzir uma descontinuidade na série e ver como ele se sai, mas isto não o incomoda. Ele faz como se nada fosse....
Nós ficamos surpresos: durante três horas, ele desenha ou pede a palavra. No fim, volta da biblioteca situada no corredor, segurando o folheto da Antenne de Bruxelas na mão, cópia que eu não encontrava mais.
A mãe silenciosa e na escuta, toma a palavra duas vezes. O que lhe é insuportável: que «em todo lugar e para todos, os pais não têm um problema. Eles são o problema!».

Urgências dos professores
Os professores de Marco, transpassados por seu trabalho intenso e incessante, estão desencorajados. A operária, sob o estímulo da mãe, os incluiu (mãe e filho) nas reuniões dos professores. A mãe, depois de um certo tempo, voltou atrás em sua decisão; compreendeu que ganhará se esquivando do grupo dos «professores». Cristina é a «professora de apoio» de Marco, na época uma mocinha, na classe onde eu havia sido convidado a falar. Ela se lembra ainda da «criança das mamadeiras cheias de água», da «criança da caneca vermelha», do esquema Z de Lacan, de «a bolsa ou a vida». «Foi então, disse ela, que eu decidi me tornar psicóloga».

▪ O que eu aprendo

1.Um buraco, pedra angular Fazendo-se destinatária e instrumento de Marco e de sua mãe, a operária de Lacan se autoriza a apostar, fazer do buraco, da falha no saber, uma pedra angular. Continua fiel à falha que é o cerne de uma rotatória onde convergem os fragmentos do real. Estes são traduzidos em elaborações que bordejam a falha e «apresentam» esses novos sujeitos, prestes-a-nascer, a sair da rotatória ricos de uma nova enunciação.

2.Um fio feito de buracos Surpreendente operária! Ela aposta na clínica de Lacan, encontrada por meio da Antenne 110. Instrumento modesto, novo São João, se empenhando em olhar de lado? O que faz função de fio de Ariane para toda essa gente (Marco, sua mãe, professores, instituições, congressos, Antenne de Pisa, Istituto freudiano, laboratório NPQ, SOS professores...), todos esses caminhos, esses encontros, todas as viagens da operária, da mãe e do mediador da Antenne 110, essa maneira de não recuar face ao tempo e as distâncias, este laço juntando todo esse mundo, essas distâncias, esse tempo, não formam eles um fio feito de buracos? Buracos por onde passa um amor que opera?

3.O Amor pelo saber Antes, a «operária», mordida pelo saber, inaugura, graças a Marco e à mãe, um campo que se enriquece de uma variedade de outros campos onde vários trabalhadores intervêm, operando em sua solidão não sem o Outro mas com o outro, o colega que tem no bolso a mesma causa, aquela de La Cause: qual? Aquela que ele descobrirá talvez graças à Lacan. A seguir, “a operária” se presta a se fazer de passadora (a encanar um “guia que acompanha” a mãe: do horror ao desejo de saber; e Marco que toma a iniciativa de ironizar o nosso saber).

4.Urgência de um ato A operária se autoriza a capitanear [capitonner] o campo do saber da psicanálise, mas não sozinha. Presta-se a fazer cadeia, a «fazer campo», associando outros lugares que têm a mesma orientação. «Operária», não é uma forma de se destituir para instituir um campo construído sobre a mesma causa? A transferência da mãe de Marco pela  operária não evita a batalha [Batalha das Fourches Caudines, Roma, 321 AC] da “dita” demanda dos pais? Magoados, tocados em sua função de pais, de mães, os pais se sentem marcados por toda a vida pelo «Nós somos o problema», constrangidos em confiar «sua» criança a desconhecidos que crêem «saber». Confiar neles? Quem nos assegura que os mediadores não gozam disso? Que nossa criança não vá nos afastar ou nos querer porque nós a abandonamos?
5.Dalla parte A urgência primordial é aquela de estar “dalla parte”, do lado de cada um. Cada um como sujeito, para realizar sua construção, passa por uma reviravolta, a de objetivar aquilo do que se trata nos pais que nos acolhem em sua instituição familiar. É a partir da saída de sua criança, triste em nos deixar, que o pais sugerem: «Porque vocês não fazem uma Antenne também para nós, os pais?». Esquecem que nos haviam ameaçado de escrever ao Rei Baudouin Primeiro! Nós havíamos proposto a internação ao seu filho.

6.Instituição ou não,,, O Laboratório NPQ de Livorno teve um momento de alegria por Marco e pela mãe: «Grazie» me disse a mãe, no final. «É a primeira vez que nós não somos um problema». Acrescento «Você ganhou a aposta». «Eu sabia que você não iria esquecer», diz a mãe. A alegria, nós a encontramos, e a “operária” não estava lá. Ela estava ocupada em algum lugar na Escola.

7.De uma escola, para a Escola. Trabalhar com o sujeito autista é uma escola. É a experiência do primeiro dia de escola. Os colegas nos encorajam a passar pela experiência de uma instituição. Eu diria mais: a passar, não somente na instituição, mas pela instituição de sua própria destituição. O horizonte é passar pela instituição onde se pode operar a partir da causa fantasmática, colocada entre parênteses, e,da Escola como campo onde opera o «analisante-analisado», a partir da causa analítica.

A experiência única de ter sido associado e incluído pela «operária» de Lacan, me faz dizer que, não somente seria necessário que cada um fizesse a experiência de trabalhar em instituição, mas que é fundamental . Como se pode perceber, para a operária, ela está numa posição de analisante, antes, durante, depois. Se há do analista, ela o foi.


NOTAS
1. Antenna del Campo Freudiano di Pisa, do Istituto Freudiano per la  clinica, la terapia e la sciencia (IF). Na Itália, as Antenne do Campo Freudiano fazem parte do IF, onde ocorre parte da formação clínica e os Seminários de formação que o IF deve assegurar.
2. Versão da «reunião de equipe» para a qual nos convocam os fragmentos do real de nossa prática. Laboratório NPQ, atividade da Antenna do C. em Livorno. («N» por necessário, o sintoma não cessa, «P» por precário, ou seja, vem quem o demanda, «Q» para quem quer que seja que, aberto a quem quer que seja que).

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