3.7.12

Respostas ao Real da Amputação


 Lacan Cotidiano 63
STEPHANIE MOREL
Respostas ao real da amputação
Trabalhando em um centro de reabilitação funcionalrecebo regularmente pacientes que acabaram de sofrer uma amputação. É notável que poucos pacientes demandam falar depois da intervenção. Assim, para a maioria deles, há como um efeito de corteradical para qualquer possibilidade de se dirigir ao Outro.

O desafio da amputação confronta o sujeito à questão do valor subjetivo da vida. O amor à vida pode, para determinados sujeitos, justificar perdê-la mais do que perder a imagem do corpo. A maioria das amputações se realiza quando o diagnóstico vital está em jogo. Muitas vezes a questão da escolha nem sequer é colocada aos pacientes. Assim, no horizonte daqueles que fazem da vida um absoluto, os triunfos técnicos da cirurgia sobrepujam, e frequentemente antecedem, essa questão tão íntima a cada um da liberdade de escolha, mesmo que isto lhe custe a vida. Como lembra Jacques-Alain Miller em sua Proposição sobre a mutilação”: “A questão gira para cada um em torno de saber até que ponto a salvaguarda da vida justifica os mais profundos danos causados à integridade do corpo próprio”. Essa questão impossível de pensar ou dizer tem, sem dúvida, por efeito, depois da mutilação, eliminar todo recurso possível ao Outro na maioria dos casos
O caso da paciente de quem vou falar é exceção. O recurso ao Outro, ao contrário, é sólido e, primeiro, sob o modo de uma demanda de coaching. Então, gostaria de mostrar como sua primeira demanda, centrada na performance, pôde-se dialetizar no decorrer do acompanhamento e, em seguida, se orientar para um trabalho de palavra lhe permitindo interrogar de outra forma sua posição subjetiva.

Uma mulher que se mantém de pé

A amputação da Senhora Cfoi realizada no início de seus cinquenta anos, como resultado de um acidente de moto; ela erapassageira. A questão da escolha não lhe foi posta, no entanto, ela sabia que em razão de seu estado, para salvar sua vida, elaperderia a perna. Quando ela lembra aquele momento entre a vida e a morte, é no filho que pensa. A ideia de que ela poderia desaparecer para seu filho lhe é insuportável.

A Senhora C. está determinada quando vem me ver. Quer conselhos para otimizar sua reabilitação e recuperar a marcha o mais rápido possível. A Senhora C. tem um histórico de esportista de alto nível no tênis e o espírito competitivo é solicitado de imediato nessa prova. Ela quer o que há de melhor em todos os níveis, funcional e estético, porque para ela isso também conta. O primeiro recurso é o encontro com o médico especialista em reabilitação: "Quando eu o vi no hospital, foi sua energia que me deu coragem e eu pensei, isso é bom, eu vou me sair bem.” Ela encontrou um homem decidido como era seu pai quando ele a iniciou na competição.

A Senhora C. me diz muito rápido “Estou me reapropriando velozmente de minha perna", o significante côto a embaraça. Logo ela foi informada sobre o desempenho tecnológico das próteses; a Senhora C. sabe que o aparelho femoral é mais complexo. Assim, a prótese C LEG, que permite que se tenha um joelho eletrônico que se adapta a todos os tipos de solo, lhe permitirá uma facilidade indubitável para andar.
Entretanto  ela vai rápido, tomada por uma energia transbordante como em sua vida –, a Senhora C. encontra um obstáculo que a faz cair na fisioterapia, causando uma fratura no braço esquerdo. Essa é a primeira vez que eu a vejo desabar em entrevista. “Eu não esperava isso; na minha cabeça, eu estava andando como antes e agora, meu joelho não me sustentou, ele não é seguro como aquele da C LEG, eu agora tenho medo de cair, tenho medo de perder meu braço.” Essa queda deixou a paciente subjetivamente contra a amputação, que não foi simbolizada como uma perda, mas, antes, como um-menos do qual ela fez a aposta de um novo desafio. Ela que “sempre dormiu como um bebê”, que nunca teve pesadelos com o acidente, de repente, sente o medo vencê-la e o sentimento que ela estava, talvez, muito eufórica. Pela primeira vez, me diz ela: “Eu estou mergulhada novamente no acidente que tive quando tinha 16 anos, eu tive o braço esquerdo machucado e jamais pude voltar ao tênis como antes”.
É aqui que se encaixa a fratura subjetiva da Senhora C., que estava prometida à uma carreira internacional.

A queda reativa a memória dolorosa dessa interrupção brutal causada, aliás, igualmente por uma queda de moto. Embora esse evento tenha sido recuperado pela paciente como um benefício para melhor qualidade de vida que ela diz ter tido em seguida, parece que a queda revela um ponto de divisão quanto a seu desejo ter orientado suas escolhas de vida. A identificação com o pai na escolha do tênis foi interrompida pelo primeiro acidente. Alguns anos depois, ela tomou as rédeas da empresa do pai, sentindo-secomo um peixe na água no meio de homens. Empresa que ela abandona depois de seu último acidente. Na escolha de seus objetos de amor, os homens que a Senhora C escolhia eram o oposto de seu pai, marginais e pouco decididos. Os acidentes representam tantas rupturas de vida, revelando uma dimensão de empuxo-ao-ferimento como a única maneira possível de sair do impasse subjetivo no qual a Senhora C. se encontra.

Faz agora dois anos que eu encontro a Senhora C.; demorou algum tempo para ela reencontrar suas marcas de vida no cotidiano: “É uma batalha a cada dia, se eu não tivesse tido a competição, eu não teria tido o mental para chegar lá”. Nossas entrevistas foram se espaçando porém mantidas conforme sua demanda como um ponto para situar regularmente seus avanços. O que faz ela hoje?

Ela retornou ao tênis competitivo na categoria esportiva de deficientes físicos, reencontrou a atmosfera, a solidariedade, o espírito esportivo: “todas as portas se abrem, eu encontrei minha vida como antes, ela especifica: antes de meus 16 anos; é tolice, mas eu não teria experimentado isso se não tivesse tido minha deficiência.”

A única desvantagem é levantar pela manhã, naquele momento em que ela sente a ausência da perna, o momento em que a prótese, que ela não gosta de ver, ainda está separada de seu corpo. Além disso, a Senhora C. me disse que pensava em recorrer a uma novatécnica de fixação da prótese no osso (Service Pommier Orthopédie).
Não é à prótese que a Senhora C. não está adaptada, é a andar. O que a atormenta é ver o objeto prótese solto do corpo, ou seu corpo nu sem a prótese. A preocupação com a estética para ela está em colocar nessa perspectiva de preservar a sequência de seu corpo de mulher que se mantém de pé.

Dois anos depois do acidente, ela disse experimentar um alívio estranho. Ela não se sente mais obrigada a fazer sempre mais e chegar à frente para se posicionar. Ela se permite não mais estar inteiramente a serviço de seu pai, de seu filho, da competição.Forçada por esse limite encontrado no real de seu corpo, ela está moderandoDepois de sua queda na reabilitação, ela não chega verdadeiramente a trocar o passo [passer la passe]. Então, quando ela caminha com sua prótese, um leve coxear permanece como amarca visível de sua lesãoEla me disse que o que mais importa é que não se saiba que ela usa uma prótese.

4 comentários:

  1. Gostei muito desse texto, especialmente, porque trabalho em um centro de reabilitação física e pouco escuto falar sobre essa temática, bem como os efeitos e consequências diante do real sobre o corpo no qual os pacientes dessas instituições se encontram submetidos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito bom, Flávia, que o texto tenha servido para vc aprofundar suas reflexões sobre a temática. continue lendo nosso Blog e mandando sugestões!
      ABS
      Bernadette Pitteri
      Diretora de Biblioteca - EBP-SP

      Excluir
  2. Gostei muito desse texto. Meu pai amputou alguns dedos da mão direita e nunca comentou nada sobre isso e usava uma luva para nem ele e ninguém participar do que estava lhe acontecendo.!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que vc tenha gostado. continue lendo o Blog.
      ABS
      Bernadette Pitteri
      Diretora de biblioteca - EBP-SP

      Excluir