4.11.12

"O reino dos paquidermes" - LC 240


“O reino dos paquidermes”
Por Guy Briole
In: Lacan Cotidiano Nº 240

O empobrecimento cultural das sociedades modernas oferece uma grande vantagem tanto ao capitalismo insaciável como à ciência subjugada por seu triunfo: não necessitam, para se propagar, nada mais do que um reduzido estoque de palavras, uma linguagem simplificada, fazendo impasse sobre o esforço de reflexão. O “como gozamos disso?” se apresenta antes do “como isso funciona?”, excluindo o “para que serve isso?”. Os objetos produzidos em série, para uma satisfação imediata, mascaram o mal estar do sujeito do século XXI. Ei-lo pronto para a avaliação, dócil aos significantes mestres do capitalismo de hoje – rentabilidade, ganho imediato, economia dirigida, utilidade, adaptação das mídias, etc. – visando todos ao enquadramento do gozo e à gestão das massas. Essa operação é tanto mais facilitada quanto mais seus significantes mestres venham a se alojar no vazio deixado em aberto pela perda de autoridade generalizada, que vai do pai na família às diferentes figuras de autoridade de um Estado.
O desmoronamento das palavras
O valor atribuído à fala atravessa uma verdadeira crise e o desmoronamento das palavras vai de par com uma reatividade muito primária ao menor desconforto que possa ocasionar a um na presença dos outros. Um olhar vale por um insulto e o golpe parte antes mesmo que um diálogo tenha podido se estabelecer. No mundo, o barulho dos canhões precede os sussurros aveludados da diplomacia ali onde, ainda recentemente, a guerra assinalava o fracasso dos embaixadores.
A tendência é de impor ao outro – pela força, por uma sugestão apoiada, por uma argumentação cientista constrangedora – o que a avaliação razoável (raisonée) decidiu ser bom para os indivíduos que não sabiam o que é que eles queriam. Ei-los agora informados e muitas vezes convencidos tanto eles são tomados no turbilhão da ecometria  que sufocou a economia. Não é mais necessário passar-se pelas palavras para levar o espírito à controvérsia e a renovar os acordos entre os homens em função dos momentos e da realidade que eles atravessam. São persuadidos de que, com os instrumentos científicos que tomam emprestado à linguagem matemática, fazem para eles um mundo sob medida no qual não lhes resta nada mais que deixar-se levar para gozar sem limites. Quando quiser! Certo, mas sob a condição de ficar calado; fala-se em seu lugar!
Ausência de fala, defeito de transmissão.
Essa sociedade da formatação pela avaliação empurra ao falatório vão e reduz as trocas a um cotidiano sem surpresas. Gera sujeitos mortos para o desejo, cada vez mais centrados sobre um gozo prometido que lhes escapa cada dia mais e que lhes devasta. É para todas as idades. Então, cada um rivaliza e se esgota para encontrar sua parte de gozo ao preço de apagar as diferenças e de preencher os intervalos, aqueles onde a fala poderia se alojar e permitir uma  transmissão entre as gerações.
Jacques-Alain Miller e Jean-Claude Maleval, na conversação sobre a avaliação, faziam valer que a Europa estava numa encruzilhada onde, depois de ter inventado a sociedade moderna depois de ter – em seguida às duas guerras tão desastrosas sob o plano humano – sido suplantada pelo modelo americano, era necessário escolher o seu futuro retomando esse último, ou nele injetando seus vinte séculos de história. Mas eis aí, “são também vinte séculos da Igreja”. Na rede de solidariedade seria necessário aceitar a avaliação, avaliar-se a si mesmo, avaliar os outros. “Faz-se como se a avaliação fosse o Evangelho. É de fato o terror conformista[i]”.
É o como se que não dá, a adesão ao sistema avaliativo não dependendo de nenhum ato de fé, de nenhuma crença numa religião que poderia explicar, consolar. De fato, trata-se de entrar no vasto laboratório do avaliados, na diversidade de animaliaria submetida à uniformização. Alguns, se acreditando mais espertos, pensarão terem contornado o sistema quando, antecipando a resposta, forem surrupiar o pedacinho de queijo do vizinho!
Depois da esperteza, eis o reino dos paquidermes. Um rinoceronte surge na paisagem urbana. “Olha, um rinoceronte!” exclamam estarrecidos aqueles que o viram. “Como assim, um rinoceronte?” Alarmam-se aqueles a quem se conta. Mas eis que muito rapidamente a sociedade se modifica e os rinocerontes tornam-se cada vez mais numerosos. Eles são todos parecidos e se comportam bem, o avaliador está satisfeito. No início, ninguém quer parecer com eles, depois a gente se habitua, vemos neles mesmo um certo encanto; alguns tornaram-se assim sem se aperceberem. O avaliador exulta. Essa multidão não pensa mais, ela mergulha na libido dominandi que lhe impõe o mestre moderno. Eugène Ionesco em sua peça de teatro, Rinocerontes[ii], escolheu esse animal, não um cordeiro, para indicar que há mais que um consentimento nessa transformação de uma sociedade que avança, cabeça baixa, chifre para frente, em direção a seus modos de gozar. É necessário uma vontade que o autor faz dizer a um dos protagonistas da peça: “Eu vou lhe pisotear, eu vou lhe pisotear.” Acompanhemos um curto diálogo[iii] entre Jean, o dogmático, e Béranger, ainda dividido. Béranger explica a Jean que nós temos, contrariamente a esses indivíduos modernos, uma filosofia, um sistema de valores insubstituível. Séculos de civilização humana o construíram!
_ Jean: Derrubemos tudo isso, ficaremos melhor.
_ Béranger: Não acredito. O homem...
_ Jean (interrompendo): O homem, não pronuncie mais essa palavra!
_ Béranger: Quero dizer o ser humano, o humanismo...
_ Jean: O humanismo está ultrapassado! Você é um velho sentimental ridículo.
_ Béranger: Enfim, de qualquer forma o espírito...
_ Jean: Clichês! Você está falando bobagem.
A escuta contra o pensar único
É muito difícil de se fazer ouvir no ruído monocórdio do pensamento único, vibrando de cifração e de avaliação.
O modo decisivo das instâncias ministeriais não é mais de uma reflexão pluridisciplinar referida ao seu contexto social, mas o de uma estimativa pelos “peritos”. As sequencias_ uma questão, um perito; um foto da sociedade, uma “perícia”; uma resposta, uma avaliação_ se sucedem numa contradição brutal do tempo chamada, hoje, “eficácia política”. Um “perito” é aquele que faz peso na língua do Outro do poder; aquele cujo pré requisito se mede pela sua “bibliometria”.
“Qual é o teu impact factor?”[iv] Eis aí uma questão que a psicanálise não se coloca. Seus interlocutores – no campo psi, econômico, político e social – de hoje, sim! O impact factor lhes interessa! Entretanto, no mundo psi que desertou a clínica e a transferência pelas estatísticas, a biologia e os protocolos, os únicos que restam presentes junto aos pacientes – no privado, nos hospitais, nos dispensários – são os psicanalistas.
A atenção dedicada àquele que nos fala dele, dos seus, do contexto no qual ele evolui, eis um bom critério de avaliação. O “tempo passado” a ouvir não dá ao psicanalista um lugar particular nesta sociedade? Com quem hoje ainda é possível falar da vida, da sexualidade, do futuro, da doença, da morte? Nem o médico, nem o político não querem mais – aliás eles não podem mais pela recusa de se afrontarem com as questões da vida, reduzidas a funções estatísticas que lhes separa um futuro já quantificado – se fazer interlocutor de um sujeito face às suas questões existenciais. O “número” é a única resposta “codificada” que eles sabem manejar. É inutilizável tanto para o sujeito, como para o cidadão.
Ética de um direito de ingerência
Tomar posição se impõe na urgência de um direito de ingerência que, se ele não tem um estatuto jurídico, encontra sua força numa ética que nos  engaja a todos.
Com a psicanálise, um valor é dado à fala. É um ponto que compartilhamos com todos aqueles que ousam o pensar de outra maneira, com os atores da cultura, também com uma imprensa engajada e não submissa ao poder.
A cultura, como a psicanálise, se opõe à formatação de uma sociedade gestionária pela subversão e estimulação das trocas, do debate. A cultura não pode se reduzir ao número. Ela não está em competição com a indústria do laser; ela é de uma outra ordem. A Comédie Française não é o Parque dos Príncipes! Da mesma forma que a Disneylândia não é Salzbourg. A cultura é alegre, aberta às surpresas, aos encontros; em oposição à diversão planejada.
O discurso psicanalítico introduz um corte nos modos de gozar modernos. Esse corte, que objeta o normativo, é contingente ao estrebuchamento do desejo. Ele abre o gaio saber (sçavoir)[v].
[1] Miller J.-Alain, Milner J.-Cl., Voulez-vous être évalués ? Paris, Grasset, Figures, 2004, p. 79
[1] Ionesco E., Rhinocéros, Paris, Folio Théâtre, 1959, p. 526
[1] Ibid., p. 190-191
[1] Impact Fator: Um fator de impacto é um cálculo que estima indiretamente a visibilidade de uma revista científica ou de ciências sociais. O FI de um jornal é o número médio de citações de cada artigo publicado nesse jornal. Os FI que servem muitas vezes de critério de avaliações quantitativas, são indexados no Thomson Reuters Journal Citations reports publicado todos os anos (fonte Wikipédia).
[1] Lacan J., “Télévision”, Autres Écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 526

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