10.11.12

Autismo: Uma lição de boa conduta


                   Uma lição de boa conduta

Por Lydie Lemercier-Gemptel
IN:  Lacan Cotidiano Nº 238


«a noção de conduta aplicada de modo unitário,
para decompor até ao disparate toda dramaticidade da vida humana»
Jacques Lacan, O triunfo da religião

            No País dos autistas, é  importante conhecer e respeitar o código de trânsito não sem antes haver, previamente, verificado os diferentes níveis de desenvolvimento de cada autista segundo as escalas recomendadas pela Alta Autoridade de Saúde (ADI Ruttler, PEP, AAEP…), a fim de evitar toda derrapagem, todo acidente. Duas avaliações são necessárias: o grau de intensidade do autismo e o nível de deficiência. Quanto mais uma pessoa for deficitária, mais o ambiente deve se adaptar; quanto mais a pessoa for autista, mais o ambiente deve ser estruturado, continente, « pré-visto ».
É assim que Jacques Constant, psiquiatra infantil, responsável por um SESSAD para autistas, introduz sua proposta no documentaire de 20081. Esse filme foi divulgado, mediante pedido do responsável pelo serviço, para a equipe do hospital dia onde eu trabalho, com o intuito de nos sensibilizar com o modo de pensar dos autistas e nos permitir assim a obtenção de uma permissão para se conduzir com eles. Essa comparação não deixa de evocar aquela que Marc Segar que, jovem autista adulto, decidiu escrever um livro para « estabelecer uma série de regras e linhas de conduta, comparáveis às do código de trânsito »2, insistindo na ideia de que « os autistas devem compreender cientificamente o que os não-autistas já compreendem instintivamente »3.
            Num estranho reflexo, os « neuróticos » - os não-autistas – devem paralelamente informar-se sobre o funcionamento do pensamento autista validado por diferentes medidas científicas para autorizar, num segundo tempo, a colocação de próteses, muletas e estratégias adaptadas para compensar a deficiência inter-ativa desse « extra-terrestre abandonado na terra sem manual de instruções »4 ; ajudá-lo a qualquer custo a comunicar-se conosco, construindo uma realidade partilhada pela estruturação do ambiente e por um sistema de comunicação específico. Com efeito, o autista não estando programado para investir nesse instrumento de linguagem, torna-se importante controlar nossas emissões verbais, nossas explicações abusivas e projetivas, frear nossa espontaneidade nas relações e mobilizar nessa troca com ele, outros apoios, especialmente gestuais e visuais, pelo emprego, por exemplo, de ferramentas de informática, implantação do método Macathon (palavras e gestos) ou PECS (imagens e palavras). Diante de nossa incapacidade de cuidar deles, essas próteses estão aí para compensar seu déficit levando em conta dois parâmetros: frear as estereotipias, adaptar-se a seu pensamento contextualizado.
Por outro lado, no País dos autistas, conduzir sozinho está interdito a fim de evitar, em caso de incidente, o confronto. É portanto o apelo para um trabalho de muitos, certamente, mas para ser apenas o « decodificador » ali onde o autista não tem instruções. Para isso, é necessário introduzir sinalizações suficientes para evitar atordoamento, medo e crises. Diante dos imprevistos do meio ambiente convém trabalhar em pequenas etapas, fazendo o corte das atividades em sequência, traduzindo  os afetos, buscando dicas para desencadear as sequências da ação. Com efeito, ao assim chamado « déficit simbólico primeiro », ajunta-se a planificação da ação. Se um autista recusa uma atividade, opõe-se a ela, é importante não deixá-lo instalar-se nessa oposição, reflexo de sua falta de iniciativa, de sua falha na partida, e não da sua vontade de não fazer. Se tais derrapagens forem observadas no País dos autistas é porque os diferentes níves de desenvolvimento deixaram de ser suficientemente considerados ou mal avaliados. A questão  não é : Porque ele não quer ? Mas : Como ele vai poder ? O « querer », inanalisado, está do lado do Outro educador, prótese aparelhada sobre o autista para envolver  esse movimento suspenso. Trata-se, portanto, de encontrar a boa mediação, a boa estratégia, para desencadear no autista a ação esperada, sempre com filigrana e, ao invés da autonomia,  prioridade concedida à performance.
            Se nesse mundo, a « diferença » entre os autistas por vezes é evocada, ela é sobretudo medida em termos de níveis e de competências, e implica que a execução de programas os quais, para serem chamados de « adaptados a cada um », não repousam menos sobre pressupostos redutores. Assim, por exemplo, alguns autistas respondem  melhor à ação solicitada, visualizando previamente o conjunto das etapas do desenvolvimento da ação, enquanto outros se apoiam mais em imagens visuais apresentadas uma após a outra, para permitir, então, uma ação fragmentada. Se a psicanálise é evocada, ela é destinada apenas, eventualmente, aos educadores.
Somente o funcionamento cognitivo é aqui considerado, num programa onde o cuidado se dobra sobre a educação. No País dos  autistas, o liame social reduz-se a uma aprendizagem dócil. Nenhum lugar para a angústia, o objeto, o gozo, o corpo, a invenção de cada um para ordenar o mundo, num endereçamento singular ao Outro, testemunha de um saber em construção, única condição para que advenha um sujeito. Trata-se aqui de um mundo escalonado, normatizado, onde cada um igual aos outros, é convidado a ter uma boa conduta. Os autistas, os condutores, perdem seus traços individuais para se tornarem as rodas de uma gigantesca máquina de um mundo autístico desumanizado e condenado a permanecer ao avesso daquele de Joey, o menino máquina5, que de « papoose elétrico » conectado a uma máquina que o comandava, tornou-se um « papoose condutor » de uma máquina, então relegada a uma posição secundária. Essa uniformização opõe-se ao « uma por uma » das crianças recebidas nas instituições orientadas por nosso campo. Assim, para Bernard Seynhaeve, Diretor do Courtil,  cada criança acolhida levanta essa questão : « Qual manobra operar no momento da admissão, para que um espaço de invenção se abra então para ele, para que o sujeito, num ímpeto de urgência subjetiva, sinta-se acolhido com seu sintoma? Esta manobra é a da transferência,  da pirueta da transferência, que se opera quando se faz bascular o mestre sobre seu avesso»6.
            Se há, com efeito, uma posição a regular nosso encontro com os autistas, há também um desafio a enfrentar, uma das maiores questões da psicanálise: apostar no sujeito7, seu saber, sobre o que ele tem a nos ensinar. « Se vocês quiserem me ajudar, escreve Jim Sinclair, não tentem confinar-me a uma pequena parte do mundo que vocês podem mudar para mim. Concedam-me a dignidade de me encontrar segundo minhas próprias condições – reconhecer que somos igualmente estranhos um ao outro, que meu modo de ser não é simplesmente uma versão deficiente da sua. Interroguem-se sobre os seus pressupostos. Definam suas palavras. Trabalhem comigo para construir mais pontes entre nós »8.


1 J. Constant, Le permis de se conduire en pays autiste, on line : http://www.dailymotion.com/video/x5wr1l_le-permis-de-se-conduire-en-pays-au_tech?search_algo=2
2 M. Segar, Faire face. Guide de survie à l’intention des autistes, Autisme Alsace. 1998, p 3.
3 B. Chamak, Les récits de personnes autistes : une analyse socio-anthropologique, Handicap- revue de sciences humaines et sociales, 2005, p 105-106, 33-50.
4 Segundo a fórmula de J. Sinclair, Construire des ponts, une vue de l’autisme de l’intérieur, E Schopler et GB Mesibov (Eds), Higt-functioning individuals with autism, New York, Plenum Press, 1992.
5 B. Bettelheim, La forteresse vide, Paris : Gallimard, 1969.
6 B. Seynhaeve, « Se faire un corps », conferência de 10 de abril de 2012 em Evreux, Conferência-debate « Pour une clinique de l’autisme »,Letterina n° 60, outubro de 2012.
7 « Défis actuels de la psychanalyse : parier sur le sujet », Letterina n° 60.
8 J. Sinclair, Ibid, 1992. Ele é o coordenador da associação, Autism Netword International (ANI) que se define como um grupo de auto-ajuda e uma organização profissional para pessoas autistas.


Nenhum comentário:

Postar um comentário