30.11.12

UMA DESORDEM CRESCENTE DA SEXUAÇÃO



 SOCIEDADE 
Lacan Cotidiano 245

UMA DESORDEM CRESCENTE DA SEXUAÇÃO

Por Liliana Mauas


Neste começo de século vivemos “uma grande desordem no real”, segundo a fórmula de Jacques-Alain Miller1. Na Argentina, é necessário repensar as consequências decorrentes, para o falasser, da lei do “casamento igualitário”2 e da “identidade de gênero”, considerando seus laços com a ordem simbólica ou o encontro com o real sem lei. Frente a estas mudanças, J.-A. Miller questionou no Journal des Journées n°78 : “Como pode um psicanalista que não sabe se conduzir na sociedade em que ele vive e trabalha, nos debates que a agitam, ser capaz de lidar com os destinos da instituição analítica ? » Pode o psicanalista não encarar a subjetividade da sua época ?

Um aggiornamiento do código civil
No século XXI, os fundamentos do casamento baseiam-se nos direitos e obrigações que a lei simbólica decreta para todos os cônjuges. Ou seja, o discurso jurídico considera que para um ser falante, um parceiro sexual natural não existe. Esta escansão que vivemos hoje, este tempo da História, esta conjuntura, toca tanto à liberdade dos sujeitos em suas escolhas sexuais quanto à modificação da estrutura familiar clássica.

Estas escolhas simbólicas nos colocam frente à novas tramas familiares, pois na Argentina, os casais homossexuais têm acesso ao casamento igualitário e conseqüentemente, na adoção de filhos. Considerando a lógica do discurso jurídico, o casamento igualitário não se concilia nem com o homo, nem com o Um, mas com a Lei. É de fato a proposição universal do “Para todos”. Focar a questão nos sujeitos e em suas escolhas levanta “ventos favoráveis”3, pelo menos nesta parte do continente.

aggiornamiento do Código Civil não se aplica somente às leis do casamento igualitário e da morte digna, mas também da identidade de gênero. Supõe-se que os analistas se mantenham à altura daquilo que acontece na cena privada e assumam uma presença responsável e cívica na cena pública, estabelecendo o debate que estas questões merecem. Somente nestas condições que poderemos enfrentar a nova ordem – muito mais uma desordem -, que poderemos propor uma escuta de parcerias, orientadas pelo preceito do « não-Todo », possível da Orientação lacaniana.

Em muitos países, o poder político se pronuncia a favor das uniões entre parceiros do mesmo sexo. Na França, a vitória de François Hollande abre uma nova porta para o casamento igualitário, para a adoção homoparental e eventualmente para a eutanásia. A França será o décimo primeiro país do mundo a adotar o casamento homossexual. Assim como Hollande, Barak Obama falou recentemente: “Eu acho que é importante dar um passo adiante e confirmo meu pensamento: os casais do mesmo sexo deveriam poder se casar”, ele declarou na Casa Branca, entrevistado pelo canal ABC. Obama, talvez em breve reeleito, recebeu os parabéns dos movimentos LGTTB (Lésbicas, Gays, Travestis, Transgêneros e Bissexuais) do mundo inteiro.

Os novos dispositivos familiares

Atualmente, estabelecer uma família nos confronta à mudanças profundas, inéditas; o dispositivo tradicional, seu arquétipo, é abalado por dentro. Somos testemunhas de novas uniões. Alguns se apoiam no discurso jurídico e sustentam o respeito do Outro, da diversidade, da multiplicidade, como no casamento igualitário.

Este século nos leva a examinar estes novos dispositivos familiares, verificando na clínica, se a busca de inscrição simbólica da família homoparental não é uma forma de atenuar a ferocidade do real sem lei de nossa época. Novos dispositivos familiares aparecem e se inserem na ordem simbólica. Assim, o cantor e compositor Ricky Martin, que interpreta o papel principal na ópera rock Evita on Broadway, decidiu tornar visível sua vida privada, adaptar-se ao discurso jurídico. Com esse recurso, ele obteve o acesso ao casamento homossexual e formou uma família com seus dois filhos. Depois de ter reconhecido publicamente sua homossexualidade em 2010, ele admite: “Eu transei com mulheres e me apaixonei, eu senti coisas maravilhosas. Não me arrependo. Homens e mulheres me ensinaram bastante.”

Assim, o recurso ao simbólico no caso do “casamento igualitário” pode, ocasionalmente, servir de trampolim para iniciar uma vida nova e reverter a pressão social, que antes da descoberta freudiana, rejeitava as uniões do mesmo sexo como perversões ou desvios.

Todavia o sujeito do desejo não se sustenta sem o laço com o falo enquanto significante do gozo. Lacan apresenta o discurso capitalista ao mesmo tempo que as fórmulas lógicas da sexuação; elas distribuem os lados homem/mulher do ser falante em relação ao significante fálico que está ao centro da diferença sexual.

Como disse Rose Paule Vinciguerra: “Se uma posição sexuada só existe em relação à função fálica, isto não implica, entretanto, um dualismo homem/mulher, ou então que a diferença de sexos se divida em um espaço de sexuação já circunscrito.”4 Em ...Ou Pire Lacan enfatiza esta bipartição, a cada instante fugaz, do homem e da mulher5Em “Les Non-Dupes errent”, Seminário inédito, ele fala de opções, de felicidade das identificações sexuadas. Assim, homem e mulher valem como semblantes.

Família eu te amo!

Para a psicanálise lacaniana, a família não é uma unidade natural cuja finalidade é a reprodução. O cinema contemporâneo também explica:

No filme Tous les papas ne font pas pipi debout (1998), (“Todos os papais não fazem xixi em pé”), o diretor Dominique Baron conta a vida familiar de um casal de lésbicas que teve um filho por inseminação artificial. Ele descreve os sofrimentos deste, desprezado e objeto de chacota dos colegas, precisamente porque vive em um dispositivo familiar que não é “normal”. A criança deseja um papai... que poderia mostrar aos seus amigos.
Em Tout va bien (The kids are all right)filme realizado nos Estados Unidos por Lisa Cholodenko em 2010, trata-se das desventuras de um casal de lésbicas e de seus filhos, concebidos por inseminação artificial. A relação amorosa delas, já antiga, está completamente de cabeça para baixo quando seus filhos adolescentes decidem entrar em contato com o doador do esperma, o simpático proprietário de um restaurante natural. Ele vai seduzir todo mundo, criando confusão e incerteza dentro da família até então unificada e inalterável. Os personagens mostram humanidade suficiente para que se forme um retrato, descobrindo os novos conceitos de família, de amor, de lealdade e de respeito.

Já em “Os complexos familiares”6 publicado em 1938, Lacan nota que quanto mais avançamos nos conhecimentos da biologia, mais fica claro que a família não apresenta nenhuma relação consigo mesma. A família é uma estrutura simbólica e social. Seu objetivo é transmitir os bens e os valores. Para Lacan, a transmissão que está em jogo na família, é uma transmissão enovelada à função do desejo. Em “Nota sobre a criança”, ele explicita a “função de resíduo que sustenta (e ao mesmo tempo mantém) a família conjugal”, sublinhando o “irredutível de uma transmissão (…) implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”7. Algo se transmite, que se encontra além do simbólico, um resto que faz surgir o real, a não relação sexual.

Nós, que nos posicionamos para além da biologia, devemos estabelecer como repensar nos dias de hoje, esta frase que Lacan enuncia em 1971-72: “Homens e mulheres, é o real8. Neste texto, Lacan indica que a homossexualidade vai se definir muito rapidamente como qualquer coisa de normal para aquilo que são as normas, mas é o gozo que virá perturbar essas normas.

As devastações contemporâneas e suas incidências clínicas: o nó capitalismo/ciência

Na conferência de Milão de 1972, inédita, Lacan ressalta que (...) “a crise, não a do discurso do mestre, mas a do discurso capitalista, que é seu substituto, está aberta (…) consagrada ao estrago, (…) que é insustentável, (…) não pode funcionar melhor, mas justamente funciona muito rápido, se consome, se consome, se consome tão bem que se esgota. Agora, vocês embarcaram (…) mas existe pouca chance que o que quer que seja torne-se sério ao longo do discurso analítico, exceto como isso, bom, por acaso (…) isto vire PESTE”.

A combinação do discurso capitalista e do discurso da ciência mostra um sujeito da inveja, um sujeito que consome os objetos que não o castram. Ele se vê impedido de pôr um controle, um ponto de basta, em um saber aparente do corpo, ainda mais porque nada faz limite ou borda às consequências desta verdade do gozo.

Quando se trata de agir no real do corpo – um ato que se deforma a partir da lei da identidade de gênero -, parece que manipular a ciência sem controle provoca resultados nefastos. Na conferência de Apresentação do IX° Congresso da AMP, J.-A. Miller ressalta que o século XXI é o século da biologia e da eugenia : “já vemos no século XXI uma desordem crescente da sexuação”9, ele enuncia.

Quanto a nós, psicanalistas, trata-se toda vez de introduzir nossa medida ética, com os meios do gozo, como uma maneira de se opor ao real sem lei.

Em seu Seminário e em seus Escritos, Lacan não cansa de lembrar que não existe relação sexual mas que existe o gozo… O gozo, associado ao amor para condescender ao desejo ou à lei do pai, se diferencia do real do gozo o qual não encontra uma borda, um limite ético que o atenua. Como psicanalistas, devemos enfatizar aquilo que implica subjetivamente o impulso da ciência, a qual opera no real do corpo, “a criação” da A mulher que não existe.

Lacan, ainda em sua Alocução sobre as Psicoses da Criança, pronunciada em 22 de outubro de 1967, diz :
“(…) De um lado, problema do direito ao nascimento, – mas também do momento de: seu corpo é seu, em que se vulgariza no início do século um ditado do liberalismo, a questão do saber, se por causa da ignorância de que o corpo é mantido pelo sujeito da ciência, iremos manter no direito, este corpo, para detalhá-lo para a troca.”10

Parece que se a ciência vai até a manipulação do real do corpo, é a ferocidade da pulsão de morte que limitará o sujeito que busca a existência do impossível de uma lógica da relação sexual que não existe.

Nós, psicanalistas do século XXI, temos de acolher o que é jogado na cena privada, mas também temos de manifestar uma presença responsável na “Comunidade” e assinalar nos debates públicos o caráter foraclusivo da ciência quando ela opera no real do sujeito. No discurso psicanalítico, a família era o modelo. A clínica era aquela do Nome-do-Pai. Em outras palavras, aquela do real simbolizado, da época em que Lacan dizia: “Há um saber no real sem lei”11; mas hoje em dia, a atualidade nos demonstra, “o real é sem lei”12. “Tudo aquilo que fora a ordem imutável da reprodução está em movimento, em transformação. Quer seja no nível da sexualidade ou da construção do ser humano, com todas as perspectivas que aparecem agora, no século XXI, de melhorar a biologia da espécie. O século XXI se anuncia como o grande século da bioengineering a qual tornará possível todas as tentações da eugenia.”13

O avanço desregrado da ciência se autoriza a operar no real do corpo. Isto não será sem consequências para a subjetividade. Na Argentina, listas de pacientes esperam por uma operação. Este avanço da ciência, que não conhece uma limitação ética, supõe, mais uma vez, a existência da relação sexual e da A mulher que somente existe na psicose, nós sabemos muito bem.

Eu considero que o que persiste, o que insiste, o que não cessa de se escrever, em uma época onde a pulsão é cada vez mais dissociada da vida, é o retorno do resto apreendido como real, o qual destruirá a dignidade do sujeito e lhe imporá as piores condições de submissão.

A propósito de uma desordem

O sujeito moderno foi destituído dos lugares fixos que lhe assinavam a tradição, ou seja, a função operatória do Nome-do-Pai. Desde Os Complexos Familiares, Lacan já havia notado a dificuldade que representava a declinação da função paterna para um sujeito. O pai mantém um lugar inconsistente, dessacralizado; ele reina mas não governa. Em seu lugar, a razão e a ciência se divinizam e conduzem à foraclusão do sujeito pois elas não têm o limite imposto pela lei. Onde vamos parar? Onde colocar o limite na ausência de alvo? Frente à este impasse, a psicanálise reinstala a ética como limite para a satisfação, enquanto que a manipulação científica sem limite alcança a depredação, inclusive do corpo.

Lembre-se que em relação ao binômio freudiano sexualidade e morte, a prática da psicanálise permitiu que o sujeito aceitasse a responsabilidade das condições do amor e do gozo, e é assim que as novas configurações familiares poderão continuar imersas no interior da lógica fálica, que sustenta as funções materna e paterna, homem e mulher, XX ou XY, ou o nome que dá a possibilidade de reinstalar em um sujeito, a marca de um desejo que não seja anônimo.

Tradução do espanhol: Marie-Christine Jannot

Notas:
1 – J.-A. Miller, «Le réel au XXIe siècle – Présentation du thème du IXe Congrès de l’AMP», La Cause du désir n° 82, Paris: Navarin, octobre 2012, p. 89.
2 – NT-Espanhol: Na Argentina, a fórmula «casamento igualitário» é utilizada para nomear o casamento homossexual e a fórmula «marido e mulher» é substituída pelo termo «os contratantes».
3 – NT-Espanhol: A intervenção de J.-A. Miller sobre «O real no século XXI» ocorreu na cidade de Buenos Aires que significa «bons ares».
4 – R.-P. Vinciguerra, «Échos du VIIème Congrès de l’AMP», 2010, inédito.
5 – J. Lacan, Le Séminaire, Livre XIX, …ou pire, Paris : Seuil, 2011, p. 187 et suivantes.
6 – J. Lacan, «Les complexes familiaux», Autres écrits, Paris: Seuil, 2001, pp. 23 à 84.
7 – J. Lacan, «Note sur l’enfant», op. cit., p. 373.
8 - J. Lacan, Je parle aux murs, Paris, Seuil, 2011, p. 61.
9 – J.-A. Miller, «Le réel au XXIe siècle – Présentation du thème du IXe Congrès de l’AMP», op. cit., p. 94.
10 – J. Lacan, «Allocution sur les psychoses de l’enfant», Autres écrits, p. 369.
11 – J. Lacan, Le Séminaire, Livre XXIV, «L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à moure», Leçon du 15 février 1977, inédito.
12 – J. Lacan, Le Séminaire, Livre XXIII, Le sinthome, Paris : Seuil, 2005, p. 137.
13 – J.-A. Miller, op. cit., p. 92.

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