3.12.12

Clínica: A ÚLTIMA PALAVRA










A ÚLTIMA PALAVRA
 por Xavier Gommichon
Lacan Cotidiano 241

 «Lacan diz que o insulto é a primeira e depois a última palavra»1. Em seu curso de 6 de dezembro 1989, Jacques-Alain Miller analisa, disseca, as características e as funções do insulto, ao qual Jacques Lacan deu um lugar central na psicose, especialmente, através da alucinação «porca», publicada no Seminário 3.
Citando Jean-Claude Milner que classifica o insulto como sendo um nome da mesma qualidade que (idiota, imbecil) ou como um nome que classifica (policial, professor). Mas, o insulto, fundamentalmente, pode carregar qualquer significado, não importa qual. Talvez, ainda mais particularmente, o Nome-do-Pai, no sentido de nome da família. Por outro lado, o insulto, pode constituir-se em um Nome-do-Pai. O contexto no qual ele é anunciado, proferido ou sugerido importa também. Da obra de Guy de Maupassant, J.-A. Miller extrai a ilustração, disso que um sujeito pode ser reduzido, depois que uma desventura galante lhe traga um apelido que tenha o valor de insulto: Este Porco do Morin (Ce Cochon de Morin), título epônimo do romance. No fim da história, o infeliz Morin morre. Maupassant parece aqui concordar com Lacan ao «aproximar o insulto e o último Julgamento»2.
No entanto, se «o insulto, é o esforço supremo do significante para chegar a dizer o que é o outro como objeto a, para cernir o seu ser, enquanto justamente, é um ser que escapa ao sujeito»3, é, como último recurso, que o sujeito insultado retorna à escolha deste significante e do seu sentido.

Lógica de um pertencimento
Para Kader, a estigmatização é companhia desde a infância. Até onde ele pode se lembrar, ele sempre foi, de uma maneira ou de outra, o mau objeto do Outro. Particularmente como o «l’Arabe de service/Árabe de serviço» (do mesmo modo que se diz, o latino ou o hispânico de serviço). Ele esclarece: da parte dos adultos.
Kader «não pensa que todos os franceses sejam racistas», mas que ser imigrante na França é umaexperiência de rejeição universal. Verdade da qual se assegura, em primeiro lugar, que o analista não se opõe. Poder-se-ia se surpreender de sua posição; Kader representa próprio tipo do êxito da integração. Filho de imigrantes dos econômicos magrebinos (pequeno Magreb, inclui o Marrocos, Sahara ocidental, Argélia e Tunísia) que desde a mais tenra idade foi um aluno brilhante, manejando a língua francesa perfeitamente, alcançando, ou mesmo excedendo rapidamente os seus irmãos mais velhos. Ele acrescenta que os seus melhores amigos eram «os bretões» e que não escondia um franco desinteresse por todos os seus «primos».
Hoje, Kader é advogado e tem dificuldade para advogar o que o leva a ver um analista. Sente um embaraço a cada vez que deve tomar a palavra, «uma perda no nível do oral» ele diz. Este embaraço tem por consequência, que, nas defesas, ele se embala, vai demasiado longe e se faz às vezes ser chamado à ordem pelo juiz. Sem o enunciar nestes termos, parece tratar-se de um desbordamento de cólera, que diz-lhe que sente «vergonha».
Deixando esta questão de lado, o analista escuta Kader evocar a sua infância, sobre a qual ele ama se estender, contar e testemunhar.
Um elemento particularmente impressionante revela-se em seu discurso concernente à sua família e às «suas origens»: a ambivalência. A primeira lembrança que traz é aquela de um abandono, em torno da idade de 5 anos, aquele de sua mãe em um parque do subúrbio parisiense e do qual diz: «Isto justifica o conflito com minha mãe». Este conflito, do qual se verá o alcance do ódio posteriormente, é compensado, imediatamente exprimido, numa versão «sociologizante» da imagem parental: seus pais eram pessoas pobres e  humilhadas, mas profundamente íntegras. Esta ambivalência afeta igualmente o seu pai descrito como fraco e «rebaixado» por sua mulher, porém honesta e trabalhadora.
A identificação com a integridade é um dos significantes de sua ética profissional. Significante que o obriga, entretanto, a não se fazer pagar pelos clientes modestos, «culpado» é o que o dinheiro proclama. Ele ouve a respeito disso a intervenção do analista que, ao contrário, lhe sugere que uma outra ética poderia consistir, a de não desvalorizar seu próprio trabalho.
A este respeito, seu pai, diz, não o «valorizou» mas o remeteu a uma imagem de «intelectual», o que implicou numa falta de virilidade – esta questão virá à tona com a idade de quinze anos por meio de uma interrogação angustiante sobre a sua homossexualidade. Sempre ambivalente, Kader categoriza toda referência ao seu ambiente «cultural» (religião, rituais, laços sociais) como barrado por uma rejeição radical, inadequada ao seu ser. Mas sem que nunca tenha se construído aí um elemento persecutório, em nome de um pertencimento ao grupo, que continua a ser problemático. Este grupo, é aquele definido por sua mãe em oposição estrutural que Kader traz assim: «Havia “eles”, os franceses, e, portanto, “havia nós” », sem distinção de qualquer individualidade.
Foi nesta grande lacuna que Kader fez as suas escolhas, desposando uma mulher «francesa» e criando os seus filhos «como franceses», ou seja, sempre «ao lado» dos preceitos e regras familiares preconizados. Mas também «ao lado», geograficamente, de sua mãe.
Sobre o que se apoiam as reivindicações de Kader, J. Lacan definiu em sua «Nota sobre a criança»: ou seja, a ausência «da encarnação da Lei no desejo»4. A dominação da fratria por um único e a aplicação de princípios anônimos retirados da tradição, comprometem «a marca de um interesse particularizado». Para ser singular, o sujeito, portanto, deve manter-se, fora do conjunto, porque nenhum Nome-do-Pai vem extraí-lo do Um formado pelo grupo. É assim que se detecta nele esta necessidade de auto-nomeação que o aproxima de outro conjunto, os franceses. Na verdade, Kader pensa saber desde a infância que ele é diferente e que seu destino não se inclui «nesta cultura».
Ora a lógica do Nome-do-Pai, quando ela está ausente, conduz a que Kader não possa mais pertencer a outro conjunto, e é com esta claudicação permanente que ele deve caminhar. O que não o impede de ser sensível, por sua vez, à «particularidade» de seus filhos.
Durante os primeiros tempos do tratamento, Kader prolonga a cadeia significante nessa «falência do Outro como lugar do significante»5, permitindo um efeito de singularização subjetiva.
Finalmente, esta singularização é aquela de um lugar de exceção, um lugar à parte na família, na fratria, na sociedade. Um lugar sob o olhar malicioso do Outro. Este lugar, sem jamais o reivindicar abertamente,  Kader o assume com uma certa serenidade.

A bofetada
Até que uma bofetada desmascara brutalmente o laço de ódio profundo que unia a mãe e o filho. Este ódio latente ressurge na ocasião de um incidente familiar, revelando o enunciado de uma censura primordial: «Você é um mau filho». «De um modo geral, indica J.-A. Miller, isto que você é, é, antes, depreciativo. Cabe ao analista, na ocasião, fazer da própria depreciação, o princípio  do elogio».6
Este episódio foi a oportunidade para Kader se fazer advogado, pôr a sua mãe no banco dos acusados e de tomar o analista como testemunha da agressão, do qual era a vítima. Equivalente a um insulto, este bofetão «visa o Outro no ponto do indizível, ou seja, ai onde o ser mesmo excede as possibilidades da língua».7 A cólera que se segue demora muito tempo para cair e dura também muito tempo, enquanto o analista se presta ao jogo como testemunha.
Por um momento Kader não insulta a sua mãe, mas desta cólera pode dizer finalmente esta verdade que conhecia desde sempre: «Ela me odeia». Uma verdade sem causa, sem lógica e sobre a qual ele não tinha nenhum controle.
Kader encontra finalmente a sua calma e a sua serenidade quando o analista finge interessar-se por outra coisa. Ele confessa, então, não ter mais nada a dizer «a este respeito» porque esta reconstrução da infância era apenas a sua. «Tudo aquilo não tinha mais o mesmo valor que antes.»
«Pintinho francês»
Algum tempo mais tarde, Kader relata pela segunda vez uma história visivelmente importante para ele: então, estava nos Estados Unidos na casa de um amigo americano, numa conversa a três, na presença de um compatriota, que vem abordar demoradamente o tema da cultura francesa. E o amigo americano exclama: «Kader, você representa para mim a própria essência da cultura francesa». Jubilação do interessado: outro efeito de reconhecimento pelo Outro, ele supôs o despeito interior do compatriota «francês» que assistia a cena.
Ora, esta história vinha com insistência redobrar, um outro significante até agora não observado pelo analista: «Um dia, minha mãe me disse, em seu dialeto, olhando-me diretamente nos olhos: ‘Você é um pintinho do francês’».
Hoje, Kader sorri desta expressão. Ele a fez precisar novamente por sua mãe, que a confirmou.  Desde então este apelido lhe ficou, como o que o nomeou, na fratria. Um «nome da mãe» que soa como o «Ce Cochon de Morin» (Este Porco do Morin), mas que não tem o caráter difamatório e do qual se pode fazer a hipótese do que funcionou como Nome do Pai.
«Basicamente, a fórmula do insulto, vem bem no momento onde, na falência do Outro como lugar do significante, que se escreve A barrado, o ser do sujeito como pequeno emerge. É então que do fundo da língua surgiu um significante que vem fixar precisamente o momento do indizível. É porque este epíteto congelado visa dizer o que é próprio do sujeito. É porque o ódio é uma das vias  para o ser.»8
Notas:
1 J.-A. Miller, (1989 -1990) El banquete de los analistas,  Argentina: Paidós.
2 Idem.
3 Idem.
4 J. Lacan,( 1969) «Nota sobre a criança», Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 369.
5 J.-A. Miller,  El banquete de los analistas, op. cit.
6 Idem.
7 Idem.
8 Idem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário