4.12.12

Autismo: novos espectros, novos mercados




Lacan Cotidiano 229

“Procura-se fazer acreditar que o autismo se espalha; descreve-se uma epidemia; cria-se um tumulto na psicanálise. De que se trata? De fazer vocês consumirem produtos que não servem para nada e nem para ninguém, mesmo para os autistas em particular. Em sua obra Autismo: novos espectros, novos mercados[i], Agnès Aflalo demonstra a estratégia de marketing da Big Pharma: “desviar-se das garantias científicas e das agências ‘independentes’ de avaliação a fim de fazer explodir suas vendas. Toda emoção torna-se uma doença.”
Anthony Allaire faz um comentário precioso do livro, desenvolvendo para nós o exemplo do Paxil.
A obra de Agnès Aflalo, Autismo: novos espectros, novos mercados lança luz sobre os ataques desses últimos meses dirigidos à psicanálise, mostrando como o DSM, a indústria farmacêutica, e as TCC estão sutilmente ligados; como um manual diagnóstico, pretendendo-se científico, torna-se uma ferramenta de marketing; como, puramente com a finalidade de venda de medicamentos, doenças e categorias são simplesmente criadas, alargadas ou remanejadas até incluir os saudáveis, abrindo assim novos mercados. Ela desvela o sistema das Key Opinion Leader [kol], dos ghostwriters, do ghost management e de outras técnicas adotadas para se prescrever e vender ao máximo, menosprezando a saúde pública. Ela examina notadamente o caso do Paxil que estourou nos Estados Unidos há dez anos.
Paxil, a prova pelo estudo 329
Paxil é o nome comercial sob o qual foi difundida a paroxetina. Vendida também como Deroxat, Seroxat, Aropax, Sereupin [No Brasil, Cebrilin, Arotin, Aropax, Benepax, Paxan, Paxtrat, Paxil, Pondera e Roxetin], é um dos antidepressivos mais prescritos no mundo. Em 2004, uma ação na justiça movida por Eliot Spitzer – procurador do Estado de Nova York -, alega que o fabricante do Paxil, GlaxoSmithKline (GSK) não divulgou os resultados de dois estudos negativos, portanto, os resultados de segurança da fase de extensão do estudo 329 e a do estudo 716 criam uma falsa impressão. Por um lado, a de que a eficácia da paroxetina no tratamento dos “distúrbios depressivos graves” na infância e na adolescência está cientificamente provada, e, por outro, a de que a balança de riscos e benefícios favoráveis à sua utilização está bem estabelecida[ii]. Entre os estudos financiados pela GSK, efetivamente apenas o estudo 329 será publicado em 2001[iii] Esse artigo foi um dos mais citados na literatura médica para a promoção de antidepressivos em crianças e adolescentes[iv]. Os signatários desse estudo afirmaram na conclusão: “Os resultados desse estudo apresentam a prova da eficácia e a segurança da paroxetina para o tratamento da depressão grave em adolescentes”. A GSK, em uma nota aos representantes comerciais, chama a atenção dos conselhos de farmácia para o fato de que esse estudo “de vanguarda”, “decisivo” demonstra uma “eficácia e uma certeza NOTÁVEL [sic]”, que “a maior parte dos efeitos secundários não são graves” com “taxas similares aos do grupo placebo”, terminando em um: “Eis ainda um exemplo do engajamento da GlaxoSmithKline em relação à Psiquiatria, pela produção de dados científicos de ponta.”[v]
O “selective reporting”
Este estudo suscitou muitas dúvidas. Uma outra ação na justiça foi iniciada por um escritório de advocacia que solicitou a Jean Jureidini, professor de psiquiatria, para conduzir um estudo independente, levando em consideração documentos internos do GSK[vi]. Isto revelou toda uma outra coisa. O protocolo desse estudo foi estabelecido em 1993 e os ensaios clínicos ocorreram entre 1994 e 1997. No final de 1997, chegou-se à conclusão de que não havia sido observada nenhuma diferença significativa entre a paroxetina e o placebo. O protocolo experimental original (1993) especifica 2 (duas) medidas principais e 6 (seis) medidas secundárias. Sobre essas 8 (oito) medidas, nenhum resultado significativo em termos estatísticos pôde ser demonstrado. “No entanto, no momento em que os dados foram analisados, numerosas medidas novas foram acrescentadas à lista das medidas secundárias. Apenas estas duas medidas adicionais introduzidas antes da análise dos dados foram relatadas quando o estudo 329 foi redigido e submetido à JAMA em 1999”, que recusou a publicação deste estudo. O artigo revisto foi finalmente publicado no Journal of the American Academy of Child and Adolescent em 2001.
Jureidini mostra, enfim, que os efeitos negativos são muito maiores do que os apontados na publicação inicial. Os efeitos negativos apontados como sérios são 5 vezes mais frequentes nos pacientes que tomaram a paroxetina. Ele conclui: “o estudo 329 foi negativo em termos de eficácia e positivo em termos de nocividade.” Agnès Aflalo evoca um outro [estudo] no qual um pesquisador da GSK havia assinalado que “dado para ratas em gestação, ela provoca um número anormalmente alto de malformações congênitas[vii]”. Muitos estudos – não financiados pela GSK – confirmam as conclusões de Jureidini sobre a eficácia não demonstrada do Paxil e sobre seus efeitos secundários notadamente quanto a um aumento dos componentes automutiladores e de riscos de suicídio[viii].  Tais práticas de seleção de dados e de critérios nas publicações científicas agora têm um nome: o selective reporting. Divulgando apenas uma parte dos dados ou dos ensaios clínicos realizados, não chegando ao público senão os pontos positivos para que se prevaleça uma “eficácia demonstrada”.
A eficácia no país do marketing

 Um outro estudo realizado por Kirsch e seus colegas[ix] também nos convida a distinguir benefícios significativos em termos estatísticos e benefícios significativos em termos clínicos. Assim, certos autores concluem seus estudos mencionando simplesmente que tal substância “demonstrou uma eficácia significativa” ou “uma superioridade”, ou, ainda, que ela demonstrou “uma eficácia mais significativa do que o placebo”, sem precisar se isso seria uma questão estatística ou clínica. Cada um sabe que o leitor interpretará a evidência em termos de eficácia clínica. Em seu livro, A. Aflalo nos esclarece sobre o aspecto de marketing dos psicotrópicos revelando a prática do Ghostwriting e dos conflitos de interesse. O estudo 329 realizado para o Paxil é, nesse sentido, didático. Uma carta do POGO [Project On Government Oversight] ao NIH [National Institutes of Health] revela que também tinha conhecimento desde há muito que o Paxil não era eficaz no tratamento da depressão na infância e na adolescência[x]; um dos documentos internos da GSK desbloqueados pela ação de “Baum, Hedlund, Aristei & Goldman”, e datado de 1998, especifica que “será inaceitável em termos comerciais comunicar que a eficácia não foi demonstrada”[xi]. Um documento de marketing do GSK indica claramente como o seu psicotrópico foi concebido como um outro objeto comercial qualquer: “Concentrem toda mensagem relativa ao Paxil em: ‘Ao ver a ansiedade, prescrevam Paxil.’ Os psiquiatras visitados são ‘a elite’ da psiquiatria. Devem ser de um grupo de psiquiatras cuidadosamente selecionados e cada psiquiatra convidado deve se sentir especial. Os médicos recebem qualquer coisa. A cada visita, deixem um leave-behind [uma amostra para os clientes para que eles se lembrem do produto]”.
Nos bastidores do DSM: ghostwriting e conflitos de interesse
Firestone e Kelsh apontaram que há elementos que parecem indicar que o estudo 329 “foi redigido de forma preliminar por Sally Laden, diretora de redação da Scientific Therapeutics Information, sociedade que preparou o manuscrito para a GSK”. Uma carta de Keller a Laden datada de 11 de fevereiro de 1999 começa com: “Cara Sally, você fez um excelente trabalho... Está excelente. Apenas acrescento aqui pequenas modificações de minha parte”[xii]O estudo 329 trouxe ao departamento da Universidade de Brown dirigido por Keller a simpática soma de 800.000 dólares entre 1993 e 1998, generosamente alocados por SmithKlineBeecham (por conta da GlaxoSmithKline)[xiii]. M. Keller membro emérito da American Psychiatric Association (APA), é, desde 1985, membro do comitê consultivo do grupo “Distúrbios de humor” do DSMe, a partir do DSM-IV, vice presidente e diretor do projeto de estudos sobre “Depressão grave, Distimia e Depressão leve”. Assim, um membro da APA (que publica o DSM), professor de psiquiatria de uma das mais prestigiadas universidades, testa a eficácia de uma molécula, a paroxetina, em adolescentes, durante um estudo sobre a depressão. Ele dirigia na época o projeto de estudos sobre depressão para o DSM, enquanto esse estudo estava sendo financiado pelo laboratório que produz a paroxetina. Quando o estudo termina, os resultados favoráveis à eficácia do produto são rapidamente comunicados. A publicação é retomada e citada por outros autores; os promotores de laboratório irão reencontrar os médicos em suas visitas e os conselhos de farmácia irão alardear a eficácia do produto... Este rápido exemplo não é um caso isolado, mas apenas uma pequena amostra das questões abordadas por A. Aflalo em seu livro de leitura esclarecedora e muito instrutiva.
i Aflalo A., Autisme. Nouveaux spectres, nouveaux marchés, Paris, Navarin / Champ freudien, 2012.
iii Keller M. et al., «Efficacy of paroxetine in the treatment of adolescent major depression: a randomized, controlled trial», Journal of the American Academy of Child and Adolescent, vol. 40, n°7, 2001, p. 762-772.
iv O estudo foi citado 463 vezes (fonte : Journal Citation Reports, http://thomsonreuters.com). Ver também: «Analysis of 39 papers/letters since our 2008 analysis that cite the Keller paper», http://www.healthyskepticism.org/global/news/extra/keller_citations_update
vi Agora acessível ao público no site do «Drug Industry Document Archive» (http://dida.library.ucsf.edu/). Cf. também Jureidini J. N. et al., «Clinical trials and drug promotion: selective reporting of study 329», International Journal of Risk and Safety in Medicine, vol. 20, n° 1-2, 2008, p. 73-81.
vii Aflalo A., op. cit.
viii Cf., particularmente, Mosholder A.,http://www.fda.gov/downloads/Drugs/DevelopmentApprovalProcess/DevelopmentResources/UCM163271.pdf ; Duff, G., “Safety of seroxat (paroxetine) in children and adolescents under 18 years- contraindication in the treatment of depressive illness”, 10 juin 2003,http://www.mhra.gov.uk/home/groups/pl-p/documents/websiteresources/con019507.pdf
ix Kirsch I. et al., «Initial severity and antidepressant benefits: a meta-analysis of data submitted to the Food and Drug Administration», PLoS Medicine, vol. 5, n°2, février 2008, e45
x Carta do POGO [Project On Government Oversight] ao NIH: «POGO letter to NIH on Ghostwriting Academics», 29 novembre 2010,http://www.pogo.org/pogo-files/letters/public-health/ph-iis-20101129.html.
xi «Seroxat/Paxil adolescent depression. Position piece on the phase III clinical studies», octobre 1998,http://dida.library.ucsf.edu/pdf/vsu38h10.
xii Firestone C., Kelsh C., «Keller's findings on Paxil disputed by doctors, FDA», Brown Daily Herald, 23 septembre 2008,http://www.browndailyherald.com/campus-news/keller-s-findings-on-paxil-disputed-by-doctors-fda-1.1669707.
xiii http://research.brown.edu/pdf/1100924449.pdf; Healthy Skepticism, carta aberta à Universidade de Brown de 4 de outubro de 2011,http://www.healthyskepticism.org/global/soapbox/entry/to_brown.

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