21.1.13

Casamento homossexual: esquecer a natureza


Casamento homossexual: esquecer a natureza
Por Jacques-Alain Miller
Lacan cotidiano 265

A tradição vaticana pretende que, justo antes do Natal, o papa responda aos almejos da Cúria Romana reunida na Sala Clementina. O discurso deste ano, enaltecido pelo L’Osservatore Romano como «um dos mais importantes de um pontificado que não cessa de surpreender», denunciava «o atentado à forma autêntica da família, constituída pelo pai, pela mãe e pelo filho». A esse respeito, o Soberano Pontífice dignou-se a comentar «o tratado cuidadosamente documentado e profundamente tocante» que o Grão Rabino da França publicara em outubro passado, sob o título «Casamento homossexual, homoparentalidade e adoção: o que esquecem de dizer».
Essas altas autoridades espirituais, uma intervindo em nome da «solidariedade que [a] liga à comunidade nacional da qual[ela] faz parte», a outra conectando-se a uma preocupação pastoral estendida à «situação atual da humanidade», dão ao debate francês sobre o casamento para todos um móbil fundamental e verdadeiramente apaixonante. Seria mesquinho utilizar a laicidade como cera para vedar os ouvidos. Vejamos, antes, o argumento.
Casar dois homens ou duas mulheres, e não apenas um homem e uma mulher é, nos dizem eles num mesmo impulso, negar a diferença sexual. Ora, não está dito, desde o primeiro capítulo do Gênesis: “E Ele os criou macho e fêmea”? Essa dualidade é a um só tempo um dom divino e um dom natural. Ela “pertence à essência da criatura humana”, diz o papa, ela é constitutiva de sua “natureza própria”. É um “fato de natureza penetrado de intenções espirituais”, interpreta o rabino, que considera a “complementariedade homem-mulher” como “um princípio estruturante”, essencial à organização da sociedade e admitido por uma “grande maioria da população”.
Uma animosidade penetrante, veemente por parte do judeu, distanciada no que concerne ao outro. Ao lê-los, compreende-se que o projeto de lei socialista incomoda o plano divino e que ele é a um só tempo blasfematório, contra a natureza e antissocial. Gilles Bernheim atribui “aos militantes LGBT”[1] a intenção de “fazer explodir os fundamentos da sociedade”. Joseph Ratzinger estigmatiza a pretensão do homem de “farsi da se”, fazer-se por si mesmo: negação do criador que é negação da criatura, utilizando-se da mesma “manipulação da natureza que deploramos hoje, quando ela concerne ao meio ambiente”. Aliás, o L’Osservatore fala de “proteger a ecologia humana e familiar”. Nenhum deles perdoa Simone de Beauvoir por ter escrito, em 1949: “não se nasce mulher, torna-se mulher”.
Esse front unido judeu-cristão, enraizado no mesmo relato bíblico, mascara muitas fissuras. A lei judaica, em sua origem, fazia do casamento um ato profano, um contrato civil, antes de ele se tornar uma cerimônia religiosa na época talmúdica.  Em S. Tomás há, entre lex naturalis e lex divina, uma relação mais finamente articulada que no agostinianismo papal. A doutrina luterana dos dois reinos torna difícil, apesar de Karl Bath, dar à natureza uma tradução em termos de lei positiva. Etc.
Os psicanalistas estão igualmente divididos. Muitos deles trazem ao discurso religioso a contribuição de um Freud que subscreve o aforismo de Napoleão: “A anatomia é o destino”. Quando o Sr. Bernheim evoca as “estruturas psíquicas de base” necessárias à criança, será a Bíblia que o inspira? Ele pensa, antes, naquele Édipo do qual Lacan previa, outrora, que ele um dia serviria para re-insuflar uma imago do pai deteriorada pela ascensão do capitalismo.
Todavia, extrair a estrutura do drama edipiano apaga seus personagens para fazer ressaltar as funções. A função do desejo em afinidade com a transgressão e desafiando toda norma por ser determinado pela lei (segundo a palavra de São Paulo): “Eu não conheci o pecado senão pela lei”. A função do gozo que só os captura, quando da primeira vez, pela surpresa e pela efração, deixando-lhes uma marca destinada a se repetir. Nada na experiência analítica atesta a existência de qualquer relação de harmonia preestabelecida entre os sexos. Essa relação foi sem dúvida elucubrada, progressivamente, de mil formas imaginárias, instituídas e individuais. Contudo, definitivamente, o que o inconsciente grita, a plenos pulmões, dizia Lacan, é que a relação sexual não existe.
Estamos nisto. A natureza deixou de ser crível. Desde que a sabemos escrita em linguagem matemática, o que ela diz conta cada vez menos, ela se retira, cede lugar a um real tipo Bóson de Higgs que se presta ao cálculo, não à contemplação. O ideal da justa medida não é mais operatório. Se a ciência veicula a pulsão de morte que habita a humanidade, creem vocês que um comitê de ética, mesmo inter-religioso, possa represá-la? Isto, hoje, é o patético da fé. Escutemos o poeta, quando ele se chama Paul Claudel: “Há outra coisa a dizer às gerações futuras além desta palavra enfadonha: “tradição”.

Tradução: Vera Avellar Ribeiro

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