18.1.13

Casamento para todos: o combate perdido pela Igreja



Casamento para todos: o combate perdido pela Igreja
Por Danièle Hervieu-Léger
Lacan Cotidiano 268
 
Nesse debate sobre o casamento para todos, não é surpreendente que a Igreja católica faça ouvir sua voz. O cuidado que ela tem de evitar qualquer referência a uma proibição religiosa sobressai. Para recusar a ideia do casamento homossexual, a Igreja invoca de fato uma “antropologia” que sua “perícia em humanidade” lhe dá direito a se dirigir a todos os homens, e não somente a seus fiéis. O núcleo dessa mensagem universal é a afirmação segundo a qual a família conjugal - constituída de um pai (macho), de uma mãe (fêmea) e das crianças que eles procriaram juntos - é a única instituição natural suscetível de oferecer ao laço entre os cônjuges, pais e filhos, as condições de sua realização.
 
Dotando essa definição da família de uma validação “antropológica” invariante, a Igreja defende na verdade um modelo de família que ela mesma produziu. Ela começou a formalizar esse modelo desde os primeiros tempos do cristianismo, combatendo o modelo romano da família o qual se opunha ao desenvolvimento de suas empresas espirituais e materiais, fazendo do consentimento dos dois esposos o próprio fundamento do casamento.
 
Nesse modelo cristão de casamento - estabilizado na virada dos séculos XII e XIII -, o querer divino é suposto se exprimir numa ordem da natureza destinando a união à procriação e preservando o princípio da submissão da mulher ao homem. Seria fazer um mau julgamento da Igreja ocultar a importância que teve esse modelo na proteção dos direitos das pessoas e na ascensão de um ideal do casal fundado na qualidade afetiva da relação entre os cônjuges. Mas a torção operada, fazendo a referência não ultrapassável de toda conjugalidade humana, torna-se apenas mais palpável.
 
Essa antropologia produzida pela Igreja entra em conflito com tudo o que os antropólogos descrevem, ao contrário da variabilidade dos modelos de organização da família e do parentesco no tempo e no espaço. Em seu esforço para manter à distância a relativização do modelo familiar europeu induzido por esta constatação, a Igreja não recorre apenas à ajuda de um saber psicanalítico ele mesmo constituído em referência a esse modelo.
 
Ela encontra também, na homenagem de apoio feita ao código civil, um meio de trazer um excedente de legitimação secular à sua oposição a qualquer evolução da definição jurídica do casamento. A coisa é surpreendente se nos lembrarmos da hostilidade que ela manifestou, a seu tempo, ao estabelecimento do casamento civil. Mas o grande alinhamento se explica se nos lembrarmos que o código de Napoleão, que eliminou a referência direta a Deus, não deteve a secularização no nível da família: substituindo a ordem fundada em Deus à ordem não menos sagrada da “natureza”, o direito se fez ele mesmo garantidor da ordem imutável, assegurando aos homens e às mulheres papeis diferentes e desiguais por natureza.
 
A referência preservada à ordem não instituída da natureza permitiu afirmar o caráter de “perpétuo por destino” do casamento e de proibir o divórcio. Essa recondução secular do casamento cristão operada pelo direito contribuiu para preservar, além da laicização das instituições e a secularização das consciências, a ancoragem cultural da Igreja numa sociedade na qual ela não foi atendida na sua pretensão a dizer a lei em nome de Deus no terreno da política: o terreno da família permanecia de fato o único no qual ela podia continuar a combater a problemática moderna da autonomia do indivíduo-sujeito.
 
Se a questão do casamento homossexual pode ser considerada o lugar geométrico da remoção [l’exculturation] da Igreja católica na sociedade francesa, é que três movimentos convergem nesse ponto para dissolver o que restava de afinidade eletiva entre as problemáticas católicas e seculares do casamento e da família.
 
O primeiro desses movimentos é a extensão da reivindicação democrática fora da esfera política: uma reivindicação que atinge a esfera da intimidade conjugal e familiar, faz ver os direitos imprescindíveis do indivíduo em relação a toda lei vinda do alto (a de Deus ou a da natureza) e recusa todas as desigualdades fundadas na natureza entre os sexos. Desse ponto de vista, o reconhecimento jurídico do casal homossexual se inscreve no movimento que - da reforma do divórcio à liberalização da contracepção e do aborto, da redefinição da autoridade parental à abertura da adoção aos solteiros - fez entrar a problemática da autonomia e da igualdade dos indivíduos na esfera privada.
 
Essa expulsão progressiva da natureza para fora da esfera do direito tornou-se ela mesma irreversível por um segundo movimento, que é a recolocação em questão da assimilação, adquirida no século XIX, entre a ordem da natureza e a ordem biológica. Essa assimilação da “família natural” à “família biológica” se inscreveu na prática administrativa e no direito.
Do lado da Igreja, o mesmo processo de biologização chegou, em função da equivalência estabelecida entre a ordem da natureza e a vontade divina, a fazer coincidir da maneira a mais surpreendente, a problemática teológica antiga da “lei natural” com a  ordem das “leis da natureza” descobertas pela ciência. Essa colisão [telescopage] permanece no princípio de sacralização da fisiologia que marca as argumentações pontificais em matéria de proibição da  contracepção ou de procriação medicamente assistida. Mas, no início do século XXI, é a própria ciência que contesta a objetividade dessas “leis da natureza”.
 
A natureza não é mais uma “ordem”: ela é um sistema complexo que conjuga ações e reações, regularidade e aleatoriedade. Essa nova abordagem despedaça os jogos de equivalência entre naturalidade e sacralidade pela qual a Igreja armou seu discurso normativo sobre todas as questões referentes à sexualidade e à procriação. Resta-lhe então, como única legitimação exógena e “científica” de um sistema de proibições que faz cada vez menos sentido na cultura contemporânea, o recurso intenso e desesperado à ciência dos psicanalistas, recurso mais precário e sujeito a contradições, nos damos conta, do que as leis da antiga biologia.
 
A fragilidade das novas montagens sob aprovação psicanalítica pelas quais a Igreja funda absolutamente sua disciplina dos corpos é esclarecida pelas próprias evoluções da família conjugal. Pois a chegada da “família relacional” tem, em um pouco mais de meio século, feito prevalecer o primado das relação entre os indivíduos sobre os sistemas de posições sociais apostadas nas diferenças “naturais” entre os sexos e as idades.
 
O cerne dessa revolução, na qual o domínio da fecundidade tem uma parte imensa, é o desacoplamento entre o casamento e a filiação e a pluralização correlativa dos modelos familiares compostos e recompostos. O direito da família homologou esse fato maior e incontornável: doravante não é mais o casamento que faz o casal, é o casal  que faz o casamento.
 
Esses três movimentos - igualdade dos direitos até no íntimo, desconstrução da ordem suposta da natureza, legitimação da instituição doravante fundada nas relações dos indivíduos - cristalizam-se juntos em uma exigência irrepreensível: a do reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e do seu direito, pela adoção, de fundar uma família. Diante dessa exigência, as argumentações mobilizadas pela Igreja - fim da civilização, perda das referências fundadoras do humano, ameaça de dissolução da célula familiar, indiferenciação dos sexos, etc. - são os mesmos que aqueles que foram mobilizados em seu tempo, para criticar o engajamento profissional das mulheres fora do lar doméstico ou combater a instauração do divórcio por consentimento mútuo.
 
É pouco provável que a Igreja possa, com esse tipo de armas, impedir o curso das evoluções. Hoje ou amanhã, a evidência do casamento homossexual acabará por se impor, na França como em todas as sociedades democráticas. O problema está em saber se a Igreja “perderá”: ela já - muitos em seu seio e até mesmo em sua hierarquia sabem - perdeu.
 
O problema mais crucial que ela deve enfrentar é aquele de sua própria capacidade em produzir um discurso susceptível de ser ouvido no próprio terreno das interrogações que trabalham a cena revolucionada da relação conjugal, da parentalidade e do laço familiar. Aquele, por exemplo, do reconhecimento devido à singularidade irredutível de cada indivíduo, para além da configuração amorosa - heterossexual ou homossexual - na qual ele se engajou.
 
Aquele, ainda, da adoção, que, de parente pobre da filiação que era, poderia tornar-se, ao contrário, o paradigma de toda parentalidade numa sociedade onde qualquer que seja a maneira que se faça, a escolha de “adotar seu filho”, e então de se engajar em relação a ele, constitui a única barreira contra as perversões possíveis do “direito a ter um filho”, que não dizem respeito apenas aos casais homossexuais mas aos heterossexuais.
 
Nesses diferentes terrenos, uma palavra dirigida às liberdades é esperada. O casamento homossexual não é certamente o fim da civilização. O fato de que ele possa constituir, se a Igreja não tiver outros propósitos além da proibição, uma marca tão dramática como foi a encíclica Humanae Vitae em 1968, no caminho do fim do catolicismo na França, não é uma hipótese escolar.
 
Danièle Hervieu-Léger
Diretora de Estudos da École des hautes études en sciences sociales (EHESS), socióloga, dirigiu, de 1993 a 2004, o Centre d’études interdisciplinaires des faits religieux (CNRS/EHESS) e presidiu o EHESS de 2004 a 2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário