25.1.13

Há óvulos nos testículos!


Há óvulos nos testículos!
 por Anaëlle Lebovits-Quenehen
 Lacan Cotidiano 272

O velho mundo ficou para trás
Há várias razões alegadas para a recusa do casamento homossexual. Uma delas surge mais frequentemente de heterossexuais ligados à instituição do casamento (mesmo civil) da qual eles são o símbolo da ordem social. É por esta razão que recusam que essa instituição possa evoluir ao longo do tempo. Com relação a isso, tudo  acontece como se esta mudança tivesse que ajudar a ordem simbólica - sobre a qual nosso mundo repousa e participa de sua reinvenção -, a desmoronar, em vez de só constatar que esta ordem está tendo dificuldades.

Mas, por trás deste argumento, um outro também se faz ouvir e a ele é difícil permanecer surdo. Trata-se do "bem" dos filhos que surgirão desses casamentos, que poderão até ser adotados pelos casais "homo" casados que, assim, têm assegurado o livro de família que é emitido nessa circunstância. É, na verdade, uma diferença fundamental entre o PACS e o casamento, porque na ocasião deste segundo compromisso, o livreto é entregue aos contratantes.  Teme-se o pior para os pequenos seres cuja identidade será registrada em breve. É também em seu nome que os defensores da família tradicional descem pelas ruas para expressar sua rejeição ao casamento gay.

No campo

Àqueles respondemos que o  modelo de família do qual La petite maison dans la prairie se prevalece, não impede os prejuízos. Em outras palavras, a forma da família não é suficiente para garantir o bom tratamento das crianças que aí são acolhidas. E a clínica ensina, em particular, que se os pais e as mães se furtam, se fogem de suas responsabilidades, produzem efeitos nefastos sobre os seus filhos, os pais que se assumem como pais ou as mães que se assumem como mães não se saem muito melhor.

Ao contrário, a experiência nos indica que muitos casais homoparentais, as mães solteiras, as viúvas – que mais sei eu ainda?  – não estão se saindo mal com sua prole. Estes são os fatos que devem ser considerados no debate que anima a opinião pública francesa hoje, porque indicam que isto que opera com relação ao eventual “bem” das crianças não deveria, em nenhum caso, ser imputado à forma social da família que as acolhe. De preferência, imputemos isto à negatividade e o nomeemos com Lacan, desejo. Uma única pessoa pode fazer o desejo existir para seu filho, independentemente de seu sexo.
A fortiori, o desejo pode advir pela graça de duas pessoas que não precisam ser os pais biológicos da criança para a qual este desejo opera, por duas pessoas do mesmo sexo ou não, por homos ou por  heteros... Na verdade, estes detalhes pouco importam, mas de tudo isso o mais importante é não acreditar que um modelo qualquer de família poderá economizar, até mesmo aos pais mais apegados às tradições, a invenção perpétua à qual a acolhida de um novo ser convoca aqueles que têm essa responsabilidade.

Chegou a hora...
Então, se isto não é bem a felicidade da criança em sua família, que é a verdadeira questão neste debate, resta interpretar a vivacidade das emoções suscitadas por este projeto de lei. Um dos slogans dos "anti" revela, acreditamos, a questão fundamental disto de que se trata. Óvulos nos testículos, não! Ouvia-se, de fato, nas ruas da capital no domingo passado. Este slogan faz entrever duas equivalências, operando por deslizamento: óvulos = mãe e testículos = pai. Estas duas equivalências  causam o impasse sobre os termos que permitem passar do real anatômico à encarnação da função materna ou paterna. Por que as duas igualdades de que se trata são na verdade: óvulo = mulher = mãe e testículos = homem = pai. Por trás da tela do slogan que coloca a anatomia em primeiro plano, entrevê-se o osso da questão: a dificuldade que existe, para todo sujeito, de se localizar do lado homem ou do lado mulher. É certo que se esconder atrás do traje do pai ou da mãe pode ser uma resposta (num impasse) a este enigma.

A ordem simbólica e a função paterna que a representou por muito tempo estariam elas, hoje, tão ameaçadas que se precisa que um milhão de pessoas pretendam salvá-las com um monte de slogans? Em todo caso, parece que a defesa da ordem patriarcal é ainda mais viva do que esta ordem é vacilante. Teme-se que nenhum slogan, nenhuma lei (ou ausência de lei), nenhum decreto poderia reanimar a força.
Como o observou recentemente Jacques-Alain Miller (1), numa hora em que a natureza há muito tem sido escrita em linguagem matemática, ela não pode mais servir de referência para homens e mulheres para se identificar o sexo que a anatomia lhes proveu. Hoje é até mesmo possível, usando-se as leis da natureza elas mesmas, ir contra o destino prescrito pela anatomia e transformar um homem em mulher, uma mulher em homem, passar-se de um como do outro para criar a vida humana. Em resumo, justamente, há óvulos nos testículos. E mesmo a lutadora Frigide Barjot não pode mais nada agora em relação a isso!

(1): artigo de Jacques-Alain Miller - Casamento homossexual: esquecer a natureza

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