12.1.13

«Retratos de mulheres»


Extrato do «Retratos de mulheres»

Por Philippe Sollers
Lacan Cotidiano 264

 «O amor atormenta apenas as pessoas que pretendem cortar-lhe as asas ou acorrentá-lo quando ele aflui com abundância querendo voar com eles. Como é uma criança, e cheia de caprichos, ele arranca-lhes os olhos, o fígado e o coração. Mas, aos que acolhem a sua vinda com alegria, que o adulam e o deixam soltar-se quando lhe agrada, e ao retornar aceitam-no de boa vontade, estes estão sempre certos dos seus favores e de suas carícias e de triunfar sob o seu império.»

Nicolas Machiavel
Carta de 10 de junho 1514

Não se nasce homem, torna-se, a maior parte do tempo às suas próprias custas.
É um longo caminho perigoso que, na maioria das vezes, não leva a nada. Se lhe mostram as direções, se lhes impõe, é uma loucura o que a palavra «  homem » engendra de valores ruidosos. É necessário isto, é necessário aquilo, você tem direito, então dê um passo, tu serás um homem, meu filho, como eu fui filho para poder comandar os filhos. Tábuas da lei, livros de catequese em madeira, clichês, sendo a mais sinistra a de um manequim de quepe diante de um caixão decorado, com expressão de tristeza, mas também mostrando o seu «orgulho» em relação a um soldado «que não morreu por nada, com as armas na mão».
Quadros de honra, campos de honra, monumentos aos mortos, memoriais, sacrifícios, bênçãos, exemplos a seguir «o verdadeiro túmulo das mortes é o coração dos vivos», transmissões, iniciações, comemorações, cinzas. A via está traçada, é necessário curvar-se, fazer esporte, ginástica, inclinar-se sobre os livros e, também sobre os livros que você não tem desejo de ler, mas apenas folhear automaticamente. Quando um sistema entra em colapso, como agora, este famoso homem não é mais do que um delinquente precoce, um terrorista furioso, um comerciante alcoolizado colado dia e noite ao seu computador. Se já não se divorciou duas ou três vezes, ele volta para casa, recebendo subitamente o mau humor de sua mulher, as demandas ruidosas e absurdas de seus filhos, as vozes alucinadas da televisão, a agitação em torno da Internet, da sociedade, àquela que vive nele como ele vive nela. Ele tenta dormir um pouco, com a cabeça cheia de números ou de cheques para pagar. Ele ainda está feliz, pois tem um trabalho, não é um desempregado, um sem documentos, ou sem domicílio fixo.  Pode mesmo fazer parte de uma minoria influente, e pode mesmo acreditar que pesa (mas muito pouco) nas decisões do mercado. Este é o homem, enfim, ou o que resta dele no processo da globalização. Aliás, a cada vez mais as mulheres se reconhecem, neste rápido retrato.
Suponhamos alguém refratário desde o nascimento. Muito cedo vai estar consciente de um artifício maciço. Sua família é uma montagem perigosa, seu país é uma fábula, a escola uma prisão com futuros cadáveres, o exército uma comédia penosa, a religião, qualquer que seja, um ópio de má qualidade. O que escuta aumenta suas dúvidas, a publicidade incessante dá-lhe náusea, os massacres organizados terminam por se edificar sobre o reino de uma estupidez profunda. Quanto mais se lhe demanda fazer-se homem, mas ele deseja fazer o contrário. A igreja homossexual tenta aproximá-lo, mas não, nada a fazer, os conjuntos, mesmo laterais não são para ele. Ocupar-se-ia do dinheiro? Não. Da política? Também não. Do mercado público das imagens? Não mais, exceto, talvez, como meio de sobrevivência no país dos loucos e das loucas. Portanto, este homem, não é «humanista»? Como o disse alguém, também, não irá chegar a estupidez de se declarar anti-humanista. Portanto, ele é ateu? Ah, não, o papel é ingrato e exige convicções. Mas, então, Deus, a fé, a verdade, o futuro da humanidade, a ciência? A ciência, porque não, os matemáticos muito frequentemente passam à frente.
Esta criança, portanto, prometido a sua carreira como um « homem », rapidamente localizou uma rachadura neste bonito programa mortal. Algo lhe dá um sinal numa esquina, da falsa decoração. Esta esquina tem um nome: mulheres. Ele observa, a cada vez mais e, ainda que digam ao contrário (com, às vezes, um fanatismo de homem), elas não acreditam. Ouça, é um segredo, não vá gritá-lo de cima dos telhados. Não espere que elas aprovem, no mundo, por menor que seja, a sua descoberta. Sirva-se disso, se você é capaz, permanecendo uma criança, mas não o confesse jamais. Você vê que a rainha está nua, mas silêncio. Você está sobre um terreno explosivo, fantástico, no meio da comédia humana e divina. Retenha-se, esconda-se, coloque as máscaras que sejam necessárias, você se aproximará gradualmente do objetivo: saber o que se trama verdadeiramente sob o rótulo imemorial de «homem».

Você tem uma mãe, irmãs, tias: comece por elas trazendo-as para o seu lado. Você evitaria todo conflito com os pais, os irmãos ou os tios, você evitaria mesmo os confrontos com os educadores ou os professores. Você não teria que escrever um dia a infância de um chefe, mas a de um desertor. Em uma palavra, você não é recrutável. Aprenda a distinguir as seus aliadas e as suas inimigas no continente feminino. Não as esqueça: elas são duplas, as inimigas podem, inesperadamente, tornarem-se aliadas (e mesmo as melhores), e as aliadas podem se transformar em inimigas (as piores). Examine com cuidado, escute, adivinhe. Esta megera quer ser domesticada, este devoto a olha com um ar engraçado, esta melancólica ilumina-se ao te encontrar, esta mulher douta adora as frivolidades, esta preciosa ridícula (no século XVII, «preciosa» era o nome dado às mulheres que se entregavam ao prazer) esta perdida para sempre. Você tem um grande mestre para representar no teatro do mundo: Molière. O amor é um médico, você será o médico nesta região agitada e sombria. As mulheres-médicas te ajudarão. Comece rapidamente: você é o rapaz imprevisto, sonhador, dissipado, contido, exuberante, «terrível», enigmático. Nenhuma punição assusta. Eles vão até o muro, você salte por cima do muro. A vida é curta, é você quem decide ter várias.

A minha mãe é a mais jovem das três irmãs. Eu lhe devo muito, tanto positivamente como negativamente. Positivamente: beleza, desenvoltura, risos frequentes, autonomia e, sobretudo, dois olhos de cores diferentes, o direito é bem escuro, o outro mais claro, dourado, impenetrável. Eu passei muito tempo fixando os seus olhos  e, me perguntando se ela tinha consciência de ter dois em um. Ninguém parecia observar que esta coruja podia ter simultaneamente um bom e um mau olho. Acrescente a isto uma pele de seda, muito impressionante e você teria o lado ensolarado do quadro.

Negativamente: autoritarismo, suave espionagem, crises de cólera frequentes. Felizmente, ela gosta do conforto e, por conseguinte da tranquilidade, e portanto, do seu sofá com sua bela lâmpada amarela na qual (não, não é possível!) ela lê. Ela não finge, ela lê verdadeiramente. Lembrar-me do que lê? É menos certo, ela não está programada para isso, mas para cercar-se propriamente das palavras. Quando criança, eu não tinha nenhuma idéia de quem era «Proust» que ela reverenciava. Seria um modelo de homem? Pouco provável.
Dito isto, mamãe está frequentemente doente e eu também. Vocês compreendem porque, é um diálogo. Felizmente, eu sou seu filho caçula, um menino depois de duas meninas, finalmente. Ela tinha 30 anos quando eu nasci, é uma burguesa deslocada no tempo e no espaço, esclarecida, gostando pouco de Bordeaux apesar da arte de viver, ela nasceu em Paris (eis ai, a pequena menina, muito elegante, de pé sobre uma mesa, no parque de Vincennes). Com ela, ao menos, é claro: existem os «homens» mas não têm nenhuma importância, são necessários, úteis, irritantes, pagadores, pesados. Sem depressão, portanto, nenhuma melancolia evidente, uma imaginação extravagante, a vingança pelo riso. Uma mulher com muito espírito, portanto, «à francesa», dons impecáveis de imitação, causticidade, crueldade. Mamãe, você me irrita frequentemente, mas eu te adoro. Eu amo o seu pescoço, a sua garganta, seu nariz, suas orelhas, seu olhos de fada ou de bruxa. Você cheira bem.
Ama-se e, ao mesmo tempo, desconfia-se um do outro, mas sem você eu não teria saído das minhas doenças, teria vegetado nos hospitais militares do qual você me tirou, com a sua obstinação, quando da guerra da Algéria, e da casa da Ilha de Ré (La Rochelle), arrasada pelos Alemães durante a guerra, e que provavelmente não teria sido reconstruída (pois, bloqueava as suas artilharias costeiras). Eu te vejo lá, viva e jovem, de forma alguma como fantasma, sentada perto da água no banco de madeira branca, sob o grande pinheiro que te protege do sol. Eu escuto a sua voz dizendo mais tarde à minha mulher «Minha pequena Julia!» ou ao meu filho descendo do trem em La Rochelle: «Meu tesouro!»
Eu tive, no final, que tomar a decisão de interromper a sua vida. Eu te telefonava duas vezes por dia, eu segurei as suas mãos, em pleno verão, em Bordeaux, eu senti seu coração bater com o meu. Em uma de nossas últimas conversas eu não encontrei nada melhor para dizer que «Tenho você comigo, em meu pensamento». Você me respondeu: «Isto é maravilhoso». E depois, uma manhã, o telefone tocou no vazio. Eu perguntei ao médico se você partiu sem sofrimento. Eu escutei a sua resposta clara e terrível: «Sem sofrimento aparente». Um pouco antes, havia me dito: «Nunca responda às questões que não lhe são colocadas». Para uma de minhas irmãs (não para mim), você murmurou: «É difícil morrer». Por algum tempo você repetiu muitas vezes: «Não há mais nada, mais nada para mim». Eu protestava. E você dizia: «O que me incomoda, é a pena que você esta tendo». Eu o tive. Eu a tive sempre.
Observei no cemitério, que em nossa família morríamos no mês de agosto. Quando você desapareceu, há longo tempo, estavam em ruínas as casas e destruídos os jardins, os móveis salvos conforme o bom senso. Você não lamentaria nada, você se divertiria. Afinal, quando era bem jovem você tinha feito esgrima, por causa do seu pai e, tinha dirigido o seu carro desde bem cedo até muito tarde.
Eu experimentei este discreto charme da burguesia, que foi levado pelo tsunami do tempo. Manhãs das mulheres, que uma vez que o homem saia para o seu escritório, descansam durante horas, escutando o rádio, deitadas com uma camisola ou um peignoir. Essas meninas (minhas irmãs) foram educadas para não trabalhar, e nunca trabalharam, exceto no casamento cuidando das crianças. Isto é muito condenável, mas isso me convém, eu gosto da bagunça. Prestavam pouca atenção em mim, aos meus olhos isto era prova de eu era de uma espécie diferente. No jogo, eu não contava verdadeiramente para nada, e pronto.
Esta espécie de paraíso, de forma alguma artificial, tem um preço mortal: o câncer. Primeiramente o câncer no seio da minha mãe (que se opera), ela o tira, ela o refaz, muito mais tarde, numa súbita explosão, o segundo câncer, radical àquele de sua irmã mais velha, Laure. Que figura ela era.
Ela mora ao lado numa casa simétrica, dois irmãos casaram-se com duas irmãs (eu tenho, portanto, imediatamente dois pais e duas mães), aquilo tudo reunido num grande jardim. Laure é, sem dúvida, a autoridade do clã, odiada pela irmã dos irmãos, que permanece solteira, e vive em um outro canto do jardim, em um «convento» com pombal, num grande estilo. Ela chama-se Maxie e é a mais misteriosa.
Laure, tem uma beleza rigorosa, assim como a elegância e inteligência, e a tragédia também, era fatal. Ela domina minha mãe e é a minha segunda mãe, angélica e severa. Elas instalaram um interfone entre uma casa e outra, o que lhes permite ligar vinte vezes por dia, para dizer um sim, ou um não. Laure tem um marido opaco e silencioso, enquanto que o marido de Marcelle (meu pai) é tímido e um tanto musical. Mas, afinal, se entendem: Laure reina, e embora tivesse um filho mais velho que eu (meu «padrinho»), ela me observa, sabe que não ando direito, que adivinho coisas, que passo tempo demais nos arbustos e nas árvores, em resumo, que eu preparo uma fuga. Isso a interessa, ela me vigia com um ar de nada, mas com um olhar penetrante.
Eu compreendi que ela era infeliz, Laure, que se asfixia, que se entedia, que se transforma em uma fortaleza inexpugnável. Ela tem, em seu quarto, um crucifixo de marfim, conhecido, eu não sei porque, como «jansenista». É a única que parece acreditar em sua religião. Sim, é isso, ela é de Port-Royal, ela despreza estes burgueses materialistas tão pouco católicos, e o clero tão indulgente e tão comprometido. Seu escritor não é Proust (como para minha frívola mãe, que lê também Colette), mas Dostoïevski. Aborrece-me com os seus silêncios de gelo, mas, intimamente, me incentiva. Não há crucifixo no quarto de Marcelle (que não gosta dos sacerdotes), também não há Deus no quarto de Laure, que atêm-se à representação de seu próprio martírio pela exibição  do martírio do pobre Jesus-Cristo.
Ela ama o seu pequeno Blaise Pascal (que sou eu) que não parece querer obedecer às ordens (nada mal) nem fazer os afazeres (muito bem). Talvez, seja, revoltado e impuro, mas inocente. O mundo é pó, mentira, ilusão, lixo, o seu marido como a maioria dos maridos é um porco. Ela demanda a morte com todas as forças, sente-se atraída, e a morte chega.
Estamos em agosto, o jardim explode em flores. Ela retorna de uma sessão de fotos com um profissional de Bordeaux, tira-se fotos antes que morra. Ela está muito cansada, não se queixa mais, realizou as suas vontades. Ela se deita, e não se recuperará, eu a escuto vagamente morrer desde as escadas, é a desolação da desolação para sua irmã mais jovem. Ai está um martírio  que dá razão a palavra terrível de Picasso, «as mulheres são máquinas de sofrimento». Este Picasso é um criminoso consciente, tem o direito de dizer coisas deste tipo. Mas Laure acusa, embora não se queixasse mais. Ela os esbofeteia no vazio, eu a admiro. Ao mesmo tempo, sejamos francos : eu estou me livrando de uma testemunha embaraçosa.
Ás vezes, eu sonho com ela. Ela aparece sempre num halo azul escuro, distante mas reconfortante. Eu ainda tive êxito em seduzi-la no tempo de minhas doenças infantis (asma, otites repetitivas). Tenho febre, e eu quero que uma única pessoa possa me aliviar, ela. Eu a demando, eu volto a pedir a sua presença, minha mãe esta com ciúmes (é também o que procuro). Laure chega, senta-se na beira de minha cama, estendo-lhe meu braço direito como para uma retirada de sangue, ela acaricia docemente o lugar da picada da agulha (la saignée) e desce do braço até o pulso. E leva a minha febre com ela, meu coração de vampiro bate por ela. É delicioso, e isso me faz um bem louco. Calamos na penumbra, não nos olhamos, vocês compreendem. Ao fim de cinco ou seis vezes, ela não vem mais, está demasiado claro. Aqui está o erotismo tórrido, ou eu não conheço a música.
Philippe Sollers
©Flammarion, 2013

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